sábado, 21 de janeiro de 2017

MARTÍRIO E FRAQUEZA


Recordo-me bem de ter lido Silêncio, do autor japonês Shusaku Endo, já lá vão uns bons anos. Ficou-me retido o fascínio pela profundidade da análise do drama existencial do protagonista, mas também alguma perplexidade a respeito da mensagem do livro. Os comentários (contrastantes entre si), que agora li, ao recente filme de Martin Scorcese baseado nesse livro confirmam essa mesma perplexidade.
Nun desses  comentários, o bispo norte-americano Robert Barren afirma que «como qualquer grande filme ou novela, Silêncio resiste a uma interpretação unívoca». Também isso revelam esses comentários.
Trata-se da história de dois missionários jesuitas portugueses que, no século XVII, percorrem o Japão em busca de um outro missionário, Cristovão Ferreira, o qual, de acordo com as crónicas da época, depois de ter sido mentor de muitos outros missionários jesuitas, não resistiu à tortura e renegou a sua fé, no período de violenta perseguição aos cristãos. Esse período de perseguição seguiu-se a um outro, de notável expansão missionária (em sessenta anos, o número de cristão atingiu os trezentos mil) que chegou a ser denominado “século cristão” do Japão.
O protagonista, Sebastião Rodrigues, dilacerado pela dúvida, vem a seguir o caminho de Cristovão Ferreira. Cede à chantagem de que é vítima: se pisar uma imagem de Jesus Cristo, sinal da sua apostasia, poderá salvar da morte um grupo de japoneses pobres convertidos ao cristianismo. O seu gesto pode ser objeto de várias leituras: uma cedência à sua própria fragilidade, ou um ato de suprema compaixão para com esses cristãos (perde-se para os salvar). Parece seguir a voz do próprio Jesus Cristo, que lhe diz para assim proceder, pois foi para ser pisado e crucificado que Ele veio ao mundo. Mas resta a dúvida se será mesmo essa a vontade de Deus, ou se essa não será uma forma de auto-justificação.
O livro foi, ao tempo da sua publicação, nos anos sessenta, objeto de severas críticas por parte de católicos japoneses. O bispo de Nagasaqui desaconselhou a sua leitura aos seus fiéis. Parece que contém uma justificação da apostasia, não valorizando o ato heróico dos mártires japoneses da época.
Agora, a propósito do filme, também já se escreveram críticas do mesmo teor.
A apostasia não se justifica em caso algum, mesmo para salvar vidas, porque os fins não justificam os meios. No combate interior de Sebastião Rodrigues, a dúvida e a fragilidade levam a melhor sobre a fidelidade dos mártires. Nesta linha, questionam a coerência cristão da mensagem do livro e do filme, entre outros, o bispo Robert Barron (em Catholic World Report), Brad Minner (em The Catholic Thing), John Paul Meenan (em Crisis Magazine) e J. D. Flynn (em First Things).
Por isso, o comentário ao filme do departamento de crítica cinematográfica da Conferência Episcopal norte-americana (Catholic News Service) afirma que o filme é adequado a pessoas de fé sólida que saibam fazer um discernimento maduro.
Compreendo essas críticas. A mensagem do livro e do filme pode ir de encontro à mentalidade contemporânea, hedonista, pouco exigente, oposta à dos mártires, dispostos da dar a vida pela sua fé. Essa mentalidade não pode entender as palavras de Jesus no Evangelho: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-me. (...) Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa há de salvá-la» (Lc 9, 23-24).
O martírio percorre a história da Igreja. «O sangue dos mártires é semente de cristãos» - dizia Tertuliano nos primeiros tempos do cristianismo. E – disse já várias vezes o Papa Francisco – são hoje mais numerosos os mártires do que o eram nos primeiros tempos do cristianismo. O cristãos assassinados pelo Daesh e pelo Boko Haran poderiam ter salvo a sua vida se tivessem renegado a sua fé (e poderiam tê-lo feito só externamente). Tal como poderiam ter evitado a fuga e a perda de todos os seus bens muitos  cristãos da Síria e do Iraque hoje refugiados. Mas – disse com veemência a Irmã Maria de Guadalupe, que esteve há pouco tempo entre nós - «eles sabem que o Céu não se negoceia».
Era esta a fibra dos mártires japoneses do século XVII, missionários e japoneses convertidos ao cristianismo. O livro e o filme parecem não os compreender ou valorizar devidamente. O martírio dos japoneses nativos é sinal eloquente de que, apesar das  falhas no processo de inculturação do cristianismo, este não deixou de criar raízes no Japão (o que também é questionado no livro e no filme).
Mas outra leitura do livro e do filme é possível.
Convirá referir que Martin Scorcese foi aconselhado pelo sacerdote jesuíta James Martin e que os dois atores principais procuraram estudar e vivenciar a espiritualidade jesuita participando em retiros espirituais.
O final da história também deixa alguns sinais de que o protagonista, Sebastão Rodrigues, não terá renegado completamente a sua fé.   
Afirma Enrique Chuvieco (em Religion en Libertad): «Silêncio é um bom filme católico, onde se reconhece – num dos protagonistas – através de um extenuante e doloroso caminho, que Deus atua em cada alma de forma distinta e que, em situações tão extremas, está silenciosamente presente no sofrimento, como esteve com o seu Filho».
Para Juan Manuel de Prada (em Magnificat.net), Sebastião Rodrigues «nunca saberá de todo se cedeu aos suplícios de compaixão dos camponeses, ou se o fez para justificar a sua fraqueza, mas saberá com certeza plena que Cristo continua a amá-lo, como, sem dúvida, amou Judas até ao fim»; com ele «descobrimos que não existem fortes ou fracos, pois quem poderá assegurar que os fracos sofrem menos do que os fortes?»
E o Pe. João Maria Brito, SJ, no Observador: «A fé também cresce nestas linhas curvas, nos pontos de rutura das nossas vidas em que sabemos tão pouco, em que nos restam tão poucas certezas. Aí, talvez o nosso grito por Deus seja mais fundo e O possamos escutar, ainda que não O consigamos ouvir de um modo límpido (...); entrar nas sombras mais profundas da fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se cala para sempre».
Ou seja, e em resumo, Deus não abandona (e o seu silêncio é só aparente) quem tem dúvidas, quem fraqueja, quem não consegue levar a sua fidelidade até às últimas consequências.
Com esta leitura, o livro de Endo e o filme de Scorcese não desiludirão os cristãos.
                                                                       Pedro Vaz Patto


     

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

TUDO SE PERDE COM A GUERRA, TUDO SE GANHA COM A PAZ

Salienta o Papa Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, que a violência não permite alcançar objetivos de valor duradouro e desencadeia uma espiral de morte infindável, que beneficia apenas poucos “senhores da guerra”. Há, então, que buscar resolver as controvérsias pelas vias da razão, das negociações baseadas no direito, na justiça e na equidade. A não-violência deve tornar-se o estilo característico dos relacionamentos e da ação política.
A não-violência a que alude o Papa não se confunde com a rendição ou a passividade; pelo contrário, é ativa e criativa e exige o máximo empenho e coragem. É potente e eficaz, como o revelam os exemplos históricos de Gandhi na libertação da Índia, Martin Luther King Jr contra a discriminação racial, ou João Paulo II e outros na queda do comunismo.
Haverá quem considere que esta é uma visão irrealista, que a guerra continua a ser um meio de reolução de muitos conflitos.Ou que será fraco o eco destas palavras do Papa junto dos políticos. Alguns destes, a seu tempo, responderam aos apelos de João Paulo II contra a guerra do Iraque dizendo que respeitavam essa sua posição, mas tinham outras responsabilidades como políticos, diferentes das de um líder religioso... E não seguiram esse apelo (teria sido melhor se o tivessem seguido- podemos afirmar hoje com certeza).
Mas não será irrealismo maior, e uma irresponsabilidade também no plano da eficácia política, pensar que a guerra resolve os complexos problemas com que nos deparamos hoje? Quase sempre a guerra cria mais problemas do que aqueles que possa resolver. Se pode ser legítima para “desarmar o agressor”, sê-lo-á em situações excecionais (e cada vez mais excecionais, se encararmos os progressos do direito internacional como uma conquista da civilização), sendo que parece continuar a ser vista como regra. «Com a guerra tudo se perde, com a paz tudo se ganha»- também afirmou noutras ocasiões o Papa.
Disso é prova evidente a atual guerra na Síria (mas também o são as anteriores guerras no Iraque e na Líbia). Dela resultam mortos, desalojados, refugiados e um verdadeiro caos social e político (e as suas consequências teriam sido ainda mais graves se tivesse havido um maior envolvimento das potências ocidentais, o que foi evitado, em grande medida, graças aos apelos do Papa Francisco). Os ódios acumulados e o fosso entre as várias comunidades são agora muito maiores. Em nada melhorou a situação desse país depois destes anos de guerra, e independentemente do seu desfecho. «Ninguém é vencedor nesta guerra» - afirmou António Guterres no discurso da sua tomada de posse como secretário-geral da O.N.U.. O desafio é, agora, precisamente, o que indica o Papa na sua mensagem: negociar com base na razão, no direito, na justiça e na equidade. Só assim poderão ser curadas as feridas e superado o caos social e político.
A guerra na Síria também não serviu para implementar a democracia, como alguns pretendiam (e o mesmo se poderá dizer das guerras no Iraque e na Líbia). Os povos do Médio Oriente não estão condenados a viver em ditadura. Quando oiço cristãos dessa região enaltecer ditadores porque garantiam a sua liberdade religiosa, fico algo perplexo, mas compreendo: na verdade, a chamada “primavera árabe” tem contribuido para o terrível êxodo dos cristãos de uma terra que habitam desde os primeiros tempos do cristianismo. É que a democracia não implica só a regra da maioria. Esta pode originar o totalitarismo se não implicar também a limitação do poder e, sobretudo, o respeito pelos direitos humanos, de entre os quais assume particular relevo o da liberdade religiosa.  E supõe um substrato social e cultural que não se impõe por decreto, não se improvisa e se constrói pacientemente. E também para esse efeito, a guerra cria mais problemas do que aqueles que possa resolver.
                                                                    Pedro Vaz Patto