terça-feira, 16 de outubro de 2012

VIVER O CONCÍLIO HOJE

  
 
Estamos nestes dias a comemorar os cinquenta anos da abertura do Concílio Vaticano II. O Papa quis associar esta comemoração à celebração do Ano da Fé, que também agora se inicia. E também agora se iniciou o Sínodo dos Bispos, que tem por tema a nova evangelização.
            A hipótese de reconciliação com os grupos cismáticos tradicionalistas seguidores de Marcel Lefebvre, em que Bento XVI tanto se empenhou (e que por estes dias se soube não se vai concretizar para já), tem como condição inultrapassável a aceitação por estes do magistério do Vaticano II, que João Paulo II definiu como «uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa», cujos textos «não perderam o seu valor, nem a sua beleza».
            Na Carta apostólica relativa ao Ano da Fé, Bento XVI afirma: «…se lermos e recebermos, guiados por uma justa hermenêutica (nos sentido de “interpretação”), o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja». Esta alusão à “justa hermenêutica” relaciona-se com um seu célebre discurso à Cúria romana de 2005, em que o Papa apresenta a “hermenêutica da reforma” como a linha correcta de interpretação dos textos do Concílio: não como uma ruptura com o magistério anterior (como se o Espírito Santo só tivesse assistido a Igreja a partir do Concílio), mas como um aperfeiçoamento e aprofundamento desse magistério, que se torna, assim, sempre vivo e adequado aos tempos actuais.
Muitas são as luzes inovadoras com que o Vaticano II enriqueceu a Igreja dos nossos dias: desde o reconhecimento da liberdade religiosa à unidade de todos cristãos e ao diálogo inter-religioso; ou à redescoberta da riqueza da Sagrada Escritura, antes esquecida em muitos ambientes católicos (a primeira comunidade do Movimento dos Focolares, era acusada por alguns ambientes tradicionais de Trento, antes do Concílio, de “protestantismo”, por dar grande relevo à vida do Evangelho).
Outra dessas luzes foi a valorização da missão dos leigos na Igreja e na renovação cristã da sociedade, dantes muitas vezes subalternizados como se fossem um “proletariado espiritual” (uma espécie de terceira divisão, em, termos futebolísticos), na expressão usada por Igino Giordani, político e intelectual italiano. Frutos do Concílio são vários movimentos laicais, que floresceram de uma forma que alguém comparou a “uma primavera” ou “um novo Pentecostes”.
Uma outra dessas novidades diz respeito à relação da Igreja com o mundo contemporâneo. Os concílios anteriores da história da Igreja normalmente surgiam para condenar heresias. A uma postura de julgamento e condenação, de combate e defesa, sucede-se uma postura de abertura, compreensão, diálogo e serviço. As palavras iniciais da Gaudium st Spes são suficientemente elucidativas a respeito desta nova atitude. A Igreja procura identificar-se (poderíamos dizer: “fazer-se um”) com os homens e as mulheres do nosso tempo: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e dos aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração». A Gaudium et Spes sublinha os auxílios e contributos da Igreja para o mundo contemporâneo (nºs 41 a 43), mas também a ajuda que deste recebe (n. 44), pois está atenta aos sinais de Deus que através deste lhe podem chegar (os chamados sinais dos tempos). De entre estes sinais, destaca o do caminho em direcção à unidade: «A Igreja reconhece tudo o que há de bom no dinamismo social dos nossos dias, sobretudo o movimento para a unidade, o processo duma sã socialização e da associação civil e económica. Com efeito, promover a unidade está de acordo com a missão profunda da Igreja, pois ela é “em Cristo como que o sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”» (n. 42).
Pediram-me recentemente para analisar as relações entre a Igreja e a sociedade portuguesa nos últimos cinquenta anos, precisamente à luz das novidades que trouxe o Concílio no plano das relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Como só tenho experiência directa dos tempos mais recentes (porque também eu fiz há pouco cinquenta anos, como o Concílio), detive-me na análise dessa relação nestes tempos mais recentes.
            Em resumo, parece-me poder dizer que há campos em que a sociedade portuguesa, de forma alargadamente consensual, incluindo os seus sectores culturalmente mais influentes, reconhece o contributo positivo da doutrina e da acção da Igreja. São sobretudo os relativos à justiça social e ao combate à pobreza. Neste âmbito, e particularmente em tempos de crise como o actual, respeita-se e reconhece-se a autoridade de quem está próximo dos pobres e de quem mais sofre, de quem conhece esses sofrimentos e procura debelá-los, e também sabe ser consciência crítica a respeito das opções e caminhos que temos seguido. Neste campo, de um modo geral, reconhece-se que a Igreja pretende servir, mais do que dominar ou impor uma sua doutrina, na linha para que claramente aponta o Concílio. Na sensibilidade espontânea perante as injustiças sociais, podemos descobrir o reflexo das raízes cristãs da nossa cultura portuguesa, que estão presentes mesmo em quem não se identifica como católico (às vezes até mais acentuadamente do que em quem se identifica como católico).
Penso que, mesmo assim, algumas reservas se impõem a esta minha conclusão sobre o reconhecimento da mensagem e acção da Igreja no âmbito da justiça social e do combate à pobreza.
Não podemos ignorar que a atenção aos alertas da Igreja (em tempos como o actual, mas também noutras alturas) corre o risco de ser instrumental e de depender de estratégias políticas. A atenção é maior quando se está na oposição e isso serve para denunciar políticas do governo em funções (ora um, ora outro), mas é menor quando as posições se invertem. Por outro lado, a atenção é maior nestas matérias, mas menor (ou torna-se mesmo hostilidade), noutras, igualmente importantes na perspectiva do magistério ético – social da Igreja, como sublinharei de seguida.
E também me parece importante advertir para o seguinte.
Não me parece suficiente que se reconheça o papel da Igreja como uma espécie de “almofada” ou “amortizador” que, com a sua ampla rede de instituições de solidariedade social, lá está para atenuar os estragos provocados pela dureza supostamente inevitável das opções de política económica. Mais do que isso, mais do que reduzir esses danos, seria importante enfrentá-los na sua raiz. Mais do que tentar apagar fogos, seria importante preveni-los e evitá-los. Mais do que recorrer a um lenitivo, seria importante evitar e combater a doença. E para isso, seria importante outra atenção ao magistério social da Igreja nas próprias opções de política económica e social, o que levaria a questionar essa suposta inevitabilidade de algumas opções.
Com estas reservas, parece-me de sublinhar o eco positivo que tem tido, e poderá continuar a ter, na sociedade portuguesa a mensagem da Igreja no campo da justiça social. Recordo, a este respeito, e só a título de exemplo, as palavras de apreço pela Caritas in Veritate dos dirigentes da C.I.P. e da C.G.T.P. numa conferência organizada pela Comissão Nacional Justiça e Paz no ano passado.
Por contraste com este eco, não podemos deixar de atender a matérias em que as políticas legislativas e a opinião culturalmente dominante (que nuns casos coincide com a autêntica opinião da maioria das pessoas; mas noutros não, pois se trata da opinião de minorias mais influentes) se têm afastado notoriamente da doutrina e da mensagem da Igreja. São aqueles temas que nos habituámos a designar como fracturantes: a defesa da vida nas sua fases inicial e terminal, questões várias de bioética (a questão recente da maternidade de substituição, por exemplo), a defesa da família, a partir da sua própria definição (já não se fala, por isso, em família, mas em famílias). Nestes campos, deve claramente falar-se em perda de influência da Igreja na sociedade portuguesa. Não será descabido identificar aqui os sinais mais evidentes dessa perda de influência. A Igreja vê-se a remar sozinha contra a maré, a defender valores e modelos que parecem definitivamente ultrapassados.
Neste quadro, tem sentido, relembrar a postura inovadora de abertura e diálogo com o mundo contemporâneo do Concílio e, em particular, da Gaudim et Spes ? Não poderemos ser tentados a pensar que não vale a pena essa abertura, porque a Igreja se aproximou do mundo contemporâneo de braços abertos e este, afinal, dela se afastou ainda mais?
Parece-me que, a este respeito, são de rejeitar por igual duas atitudes.
Uma, a de esquecer ou desvalorizar estes temas, que se tornam incómodos porque dividem (porque são fracturantes) e porque insistir na defesa dos princípios tradicionais afastaria a Igreja do mundo contemporâneo, contra o que pretende o Concílio. Haveria que acentuar apenas, ou prevalentemente, aquilo que mais se conforma ao “espírito do tempo”, porque assim se favorece o diálogo.
Outra, a de considerar superada a postura de abertura e diálogo com o mundo contemporâneo e assumir uma atitude mais enérgica, de defesa e combate, à imagem do que se verificava antes do Concílio.
São duas atitudes que encontram eco em diferentes sensibilidades no âmbito interno da Igreja e também em diferentes expectativas a respeito do sentido das intervenções da hierarquia, incluindo, naturalmente, a da Igreja portuguesa.
Já se tem tido que a visão do Concílio a respeito do mundo contemporâneo é demasiado optimista ou ingénua e que a evolução posterior veio a tornar injustificado tal optimismo. Provavelmente, os Padres Conciliares, ao exaltarem as virtudes do progresso técnico próprio da modernidade, não imaginariam onde se chegaria cinquenta anos depois quanto aos riscos de abusos e manipulação no âmbito da bioética. Noutro âmbito, não imaginariam que desse progresso pudesse resultar uma crise ecológica como a que vivemos hoje. Não imaginariam que a difusão do aborto chegasse onde chegou. Não imaginariam onde chegaria a crise da família, com o tão grande generalização do divórcio (um para cada dois casamentos). Não imaginariam certamente que viesse a pretender-se redefinir o casamento. Quando se falava em excesso de população, não imaginariam que cinquenta anos depois fosse, pelo contrário, a queda da natalidade o mais grave dos problemas para muitas sociedades.
Mas a visão dos Padres Conciliares não é ingénua ou excessivamente optimista. Depois de enaltecer o valor da actividade humana e do desenvolvimento (que correspondem à vontade de Deus), a Gaudium et Spes (n. 37) relembra que essa actividade está corrompida pelo pecado: «A Sagrada Escritura, com a qual está de acordo a experiência dos séculos, ensina à família humana que o progresso humano, que é um grande bem para o homem, traz consigo uma grande tentação: uma vez perturbada a hierarquia dos valores e confundindo o mal com o bem, os indivíduos e as colectividades só consideram os interesses próprios, e não os dos outros»; «De facto, trava-se ao longo de toda a história humana uma árdua batalha contra os poderes das trevas, a qual, começada na origens do mundo durará, como diz o senhor, até ao último dia»; «Por isso, a Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, enquanto reconhece que o progresso humano pode servir para a verdadeira felicidade do homem, não pode deixar de se fazer eco da voz do Apóstolo: Não vos conformeis com o tempo presente (Rm 12, 2), isto é, com aquele espírito de vaidade e malícia que transforma a actividade humana, ordenada pelo serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado».
Ao caracterizar o mundo contemporâneo, a Gaudium et Spes (n. 9) realça as suas luzes, mas também as suas sombras: «o mundo moderno aparece, ao mesmo tempo, poderoso e fraco, capaz do melhor e do pior, enquanto na sua frente se rasga o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio».
A Igreja não seria fiel à sua missão, nem serviria o mundo de hoje como pretende o Concílio, se, em nome de uma falsa e inconsistente busca de consenso, se demitisse de alertar para retrocessos que representam a destruição de um precioso legado civilizacional que é fruto da mensagem cristã. Pode fazê-lo sozinha, pode “clamar no deserto” ou “remar contra a corrente”. Mas não pode deixar de o fazer. Se não for ela a fazê-lo, ninguém o fará. Muitos acabarão por reconhecer nessa sua obstinação um verdadeiro serviço, talvez quando se aperceberem a que consequências pode chegar a destruição desse legado. Dou-vos apenas um exemplo.
Um artigo publicado recentemente numa influente revista de ética médica, que se tornou famoso e suscitou grande polémica, veio afirmar a legitimidade da morte intencional de crianças recém-nascidas quando elas possam representar um fardo para os seus pais ou a sociedade. Seria assim porque entre o feto e o recém-nascido não há diferenças substanciais, um e outro não têm o estatuto de pessoas porque não têm capacidade de dar valor à sua existência (é claro que esse valor existe, mesmo quando os seus titulares dele não têm consciência, pois é precisamente quando, pela debilidade associada à idade, à doença ou deficiência, o ser humano não tem sequer a consciência do valor da sua existência que mais se justifica o cuidado dos outros e a protecção da ordem jurídica). Esta tese suscitou vivo repúdio, porque com ela é atingido um precioso legado civilizacional ainda bem vivo, que é fruto da revolução cristã e estava ausente na antiguidade pagã, onde se aceitava o infanticídio e o abandono de recém-nascidos. Mas é uma tese que é decorrência lógica do princípio que conduz à pretensa legitimação do aborto (por isso, os seus autores falam em aborto pós-natal). Se não houver quem, com constância e desassombro, como vem fazendo a Igreja, ponha em causa esse princípio, vemos, por aqui, onde se pode chegar.
Ser fiel ao magistério do Concílio não nos leva, pois, a ignorar estes temas, nem a ocultar a verdade em nome do diálogo e da caridade (senão esta, tornar-se-ia, como diz a Caritas in Veritate (n. 3), « um invólucro vazio que se pode encher arbitrariamente»).
Mas isso também não significa que há que “cerrar fileiras” como se não tivesse havido o Concílio, esse grande dom do Espírito Santo à Igreja, o acontecimento mais relevante da sua história no último século.
Significa antes, por um lado, privilegiar o anúncio sobre a denúncia. Significa, que mais do que dizer “não” (e mesmo que, muitas vezes, se imponha fazê-lo), há que dizer “sim”, porque a mensagem de Jesus e da Sua Igreja é um “sim”, mais do que um “não”. Significa que mais do que denunciar ataques à vida e à família, importa exaltar a beleza da vida e da família. Pode servir-nos de exemplo a postura do Papa Bento XVI que nas suas viagens, por vezes em contextos de acesas polémicas, antes de tudo, enaltece a beleza da fé e da vida que dela brota. E reside aí o segredo que explica o sucesso de visitas com prognósticos tão reservados à partida (sucedeu assim entre nós).
Por outro lado, a mais eloquente e convincente (talvez mesmo irrefutável) das mensagens é a que passa pelo testemunho. Já Paulo VI dizia que a época contemporânea escuta mais facilmente os testemunhos do que as lições dos mestres. E afirmou Bento XVI aos bispos portugueses em Fátima, há dois anos: «O apelo corajoso e integral aos princípios é essencial e indispensável; todavia a mera enunciação da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho d’Ele.»
 Recordo a propósito um episódio que se passou comigo há uns meses atrás.O cardeal Ennio Antonelli, presidente do Conselho Pontifício para a Família esteve entre nós há alguns meses atrás e apresentou na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa uma conferência sobre a Familiaris Consortio que se integrava num colóquio sobre “família e direito” a propósito do trigésimo aniversário da publicação desta exortação apostólica. Consciente das distância entre o modelo de família aí apresentado e o actual direito de família de quase todas as nações, e da própria realidade sociológica da família hodierna, usou uma imagem de João Paulo II para sublinhar que não podemos desistir de apontar a esse modelo: devemos ajudar as pessoas a “subir a montanha pelo seu pé” e não tentar “abaixar a montanha”. Quando o fui cumprimentar em nome de um movimento de famílias que ela conhece bem, respondeu prontamente: «deveríeis ser vós a falar, e não eu, a apresentar o vosso testemunho, provando, assim, que é possível a vida da família proposta pela Familiaris Consortio».
A este ponto, e a propósito de testemunho, tenho de confessar que não estou a respeitar integralmente o pedido que me fez o Sr. Pe. Manuel Coutinho quando me convidou para vir falar-vos. Pediu-me ele que desse sobretudo um testemunho vivencial, mais do que uma lição teórica. No fundo para, mais do que dizer como se deve viver o Concílio hoje, dissesse como procuro eu viver o Concílio hoje. Vou, então, respeitar agora o pedido que me foi feito, dando-vos alguns exemplos de como procuro pôr em prática algumas das ideias de que vos falei.
Falei-vos da valorização do papel dos leigos na Igreja e no mundo (já não um “proletariado espiritual” ou uma “terceira divisão”).
Como cristão leigo, sinto que sou chamado a iluminar e animar com o espírito do Evangelho o âmbito social em que trabalho. Cada um de vós será chamado a fazer o mesmo no seu âmbito, talvez bastante diferente do meu. De qualquer modo, é-nos lançado um desafio nem sempre fácil, porque não temos nenhum livro de receitas sobre como se faz isso (embora a doutrina social da Igreja nos sirva de ajuda) e temos de ser nós a descobri-lo.
Sou juiz há vários anos, trabalhei durante alguns desses anos como formador de futuros magistrados, quase sempre na área criminal.
Tenho reflectido e estudado a questão da reacção ao crime e dos fins das penas criminais numa perspectiva cristã. No âmbito dessa reflexão e desse estudo li um livro muito interessante de um teólogo evangélico (Christopher Marshall) sobre essa questão (Beyon Retribution A New Testament Vision for Justice, Crime and Punishment, Eerdmann, Grand Rapids, Cambridge, 2001) que começa por dizer logo no início desse livro (p. 1) que «o crime é uma das áreas do comportamento humano mais difíceis de lidar numa perspectiva cristã».
Também no âmbito dessa reflexão e desse estudo, muitas vezes tenho presente as palavras de João Paulo II na sua mensagem para o dia mundial da paz de 2002 sobre a justiça e o perdão. Diz o Beato João Paulo II nessa mensagem que a justiça e o perdão não são termos opostos ou alternativos, mas complementares. « (…) o perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça. Na realidade, a verdadeira paz é « obra da justiça » (Is 32, 17). (…) Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transtornadas. Isto vale tanto para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada; mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.»
O desafio com que me deparo e de que vos falei é, então, o de concretizar estas ideias da mensagem de João Paulo II.
É claro que não posso obrigar as vítimas de crimes a perdoar os criminosos. É minha obrigação “fazer justiça” e esta não se opõe ao perdão, é um seu pressuposto. Mas só a reconciliação e o perdão permitem restabelecer plenamente aquela harmonia que foi quebrada pela prática do crime. O meu papel é, então, o de abrir as portas a essa reconciliação, facilitando-a (sem a impor, porque não a posso impor) e não a dificultando. Como é que o tenho feito?
Em muitas situações, o processo-crime pode terminar com uma desistência de queixa associada a alguma forma de reparação material e moral. Tive algum sucesso nas tentativas que fazia e (quando era formador) explicava aos meus formandos que me parecia residir o segredo desse sucesso no esforço que eu fazia de me identificar plenamente com a situação e o sofrimento das duas partes (sentir este como “meu”), sem nunca o desvalorizar o sofrimento da vítima, para a qual aquele processo seria o único quando para mim seria um entre muitas centenas.  
Para além da reconciliação entre agente do crime e vítima, há a da reconciliação entre o agente do crime e a sociedade. Nessa perspectiva, a nossa lei favorece penas alternativas à pena de prisão, pois esta não favorece a inclusão social do agente do crime, antes acentua a sua exclusão e marginalização sociais. Por vezes, porém essas penas são encaradas como reflexo de algum laxismo que não se coaduna com a necessária afirmação da gravidade dos crimes em causa.
Neste contexto, desde há vários anos tenho procurado aplicar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, estudando as suas vantagens e dificuldades de aplicação e partilhando (quando era formador) os frutos dessa minha experiência e desse meu estudo com os meus formandos. Quando comecei a trabalhar, esta pena era pouco aplicada (na altura, fui até convidado para a apresentar num vídeo de divulgação sobre ela, por ser dos poucos juízes que a aplicava), mas agora já não é assim.
E porque é que me parece que esta pena tem grandes virtualidades? Precisamente porque, sem deixar de condenar o crime, de fazer com o que o condenado “salde a sua dívida” para com a sociedade (por isso, tem de trabalhar, com o que isso tem de penoso), não o exclui, não o estigmatiza (como faz a prisão), mas o valoriza como pessoa útil, permitindo, assim, restabelecer aquele laço entre ele a comunidade que a prática do crime quebrou. Concilia-se, assim, a justiça, o castigo, com a reconciliação entre o criminoso e a comunidade. Ao mal do crime responde-se não com outro mal (como é próprio da vingança), mas com um bem, um trabalho socialmente útil.
Também como cristão leigo, fui descobrindo que Deus me chama a iluminar com a luz dos valores evangélicos não apenas o meu campo de actuação profissional, mas também a chamada “opinião pública” e os debates sobre questões éticas com reflexos na legislação. De cada vez que surge algum desses debates na sociedade portuguesa (o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.), procuro estudar a questão e tenho escrito alguns textos sobre o tema em causa, textos que procuro divulgar de várias formas, quanto mais não seja pela a internet (através da qual se chega hoje a muita gente). Para além da internet, tenho tido ecos dessas minhas ideias na imprensa da Igreja. Mas é claro que o meu objectivo é chegar a outra imprensa de difusão mais larga, para além da imprensa da Igreja (lida por pessoas normalmente já convencidas, ainda que sempre necessitadas de esclarecimento). Nesse âmbito mais largo da imprensa, é mais difícil penetrar. O meu esforço tem sido o de preservar com paciência e nunca desistir: envio muitos artigos para publicação sobre temas de actualidade, que exigem trabalho e estudo, mas que nem sempre são publicados. Mas nunca desisto e já fico contente quando é publicado um entre quatro que envio.   
 Esses temas são os chamados temas fracturantes a que acima me referi, temas polémicos, que dividem. Como também disse acima, viver o espírito do Concílio Vaticano II, que convida ao diálogo com o mundo contemporâneo não significa fugir a estes temas por serem temas polémicos e que nos colocam contra a corrente. O que procuro fazer é ser fiel à verdade e à caridade, distinguindo o erro da pessoa que erra, condenado o erro sem deixar de respeitar e amar a pessoa que erra. Quando intervim em debates sobre o aborto, aquando dos referendos, procurei fazê-lo pensando sempre na hipótese de me estar a escutar alguma mulher que tenha cometido um aborto, evitando ser ofensivo para com ela. Também fiquei particularmente feliz quando, a propósito da discussão sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo alguém sugeriu que fossem enviados os meus textos como resposta a umas pessoas de orientação homossexual que se sentiam pessoalmente ofendidas com alguma argumentação, precisamente porque esses textos não seriam ofensivos.
À luz do que acima vos disse sobre a importância de pôr em relevo o anúncio mais do que a denúncia, a beleza da fé cristã mais do que a condenação dos erros do mundo contemporâneo, aquilo a que dizemos “sim” mais do que aquilo a que dizemos não, tenho procurado não limitar os meus escritos e intervenções a esses temas polémicos. Dou-vos apenas um exemplo.
Um filme de que muito gostei de ver, precisamente porque é revelador da beleza da fé cristã (um filme que muitos de vós conhecerão e que recomendo a quem não conheça), foi o filme Dos homens e dos deuses, sobre um grupo de monges trapistas franceses assassinados na Argélia. Depois de o ver, resolvi escrever um comentário com a minha impressão e divulguei, através da internet, esse meu comentário entre o maior número de pessoas, incluindo os meus colegas de trabalho. Ao ler esse meu comentário, um desses meus colegas foi ver o filme e esse facto gerou entre nós um muito frutuoso diálogo sobre o conteúdo do filme, que envolve temáticas espirituais a que normalmente são alheias as conversas entre colegas. Encontrei, assim, um pretexto para evangelizar de uma forma discreta e bem acolhida.  
Bom, estes são apenas alguns exemplos de como procuro viver a minha vocação de cristão leigo à luz da mensagem do Concílio Vaticano II, aquela mensagem que é para nós, como disse no início citando o Beato João Paulo II, a “bússola segura para nos orientar no caminho do século que agora começa”.           
                                                                        
Vila Real, 12 de Outubro de 2012
Pedro Vaz Patto