sábado, 28 de outubro de 2017

RECOMEÇAR A PARTIR DAS CINZAS

Nota da Comissão Nacional Justiça e Paz
Recomeçar a partir das Cinzas

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis (...)

O fragmento do poema de Sophia de Mello Breyner descreve de algum modo aquilo que a comunicação social evidenciou à exaustão ao longo destes dias: a coragem, sentido de colaboração e solidariedade, resiliência, dor contida e digna das populações afetadas pelos mais recentes fogos. Ouvimos dizer, em voz permeada pelas lágrimas: “Nós estamos aqui e não vamos baixar os braços”. A devastação é trágica. As imagens aéreas lembram um país em guerra, um país bombardeado.
Em junho passado a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) divulgou uma Nota relativa aos incêndios do verão. Essa Nota, assumida colectivamente com as Comissões Diocesanas Justiça e Paz e a Comissão Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, expressava uma profunda solidariedade com as vítimas, na sua maioria pertencentes às populações rurais mais frágeis e isoladas, reconhecendo simultaneamente o trabalho e dedicação dos bombeiros. Sublinhando a gravidade das alterações climáticas a CNJP, citando o Papa Francisco, alertava os responsáveis políticos e a sociedade civil para que fosse desenhado um novo ordenamento do território orientado por critérios do bem comum.
Já no passado mês de abril, ainda não tinham começado os incêndios, a Conferência Episcopal emitiu uma Nota Pastoral (“Cuidar da casa comum- prevenir e evitar os incêndios”) alertando para o que poderia novamente suceder quando se aproximasse o verão. Mais recentemente, em setembro, a Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana emitiu uma Nota no Dia Mundial da Oração pelo Cuidado da Criação e, na sequência de novos incêndios, convidava «todas as comunidades cristãs a dar graças a Deus pela Criação e a pedir ao Criador a conversão do coração daqueles que se consideram donos e senhores do mundo em que vivemos».
A CNJP não quer repetir o que foi dito anteriormente. Mas sente-se compelida a fazê-lo, insistindo e eventualmente apontando novas dimensões desta calamidade pública, começando pelo exemplo de solidariedade, organização e cooperação local que permitiu que a tragédia não fosse ainda mais grave. Os mais afastados dos poderes centrais demonstraram uma forma de ser e de viver a tragédia digna de “reis” ou mesmo de “heróis”. Uma grandiosa lição para quem estabelece linhas orientadoras e toma decisões que afectam todos e cada um.
Ao longo destas semanas foram produzidos Relatórios, aliás de grande qualidade, por diferentes comissões ou instituições. O tempo foi-se desdobrando em comentários e comentadores políticos “ditando de sua justiça” e fazendo as suas leituras dos acontecimentos. Mas será que foi criado um amplo consenso para uma ação concertada? É óbvio que “o Estado falhou” mas será que o Estado não abrange também todos nós, mulheres e homens “de boa vontade”, bem como a sociedade civil e suas organizações numa clara dimensão coletiva?
A CNJP considera que:
· É urgente repensarem-se – isto é, para já... para hoje!!! - todas as estruturas de suporte a calamidades como esta ou outras, implicando o Estado e os responsáveis políticos a nível central, regional e local, numa estratégia de concertação;
· É urgente passarmos de um Estado centralista e distante dos cidadãos a estruturas integradas a nível nacional mas também local que intervenham concertadamente e que prestem contas e sejam submetidas a uma avaliação sistemática pelos cidadãos;
· É urgente identificarem-se criminosos – indivíduos ou grupos organizados – fazendo-os prestar contas à justiça para que não fiquem impunes mas evitando, no entanto, “discursos de ódio”;
· É urgente reinventar uma cidadania proactiva, solidária, eficaz, que reforce a sociedade civil, afronte e denuncie burocracias e inanições irresponsáveis, reconhecendo a importância do voluntariado social a todos os níveis e em todos os lugares.
Finalmente é também urgente que criemos um novo ethos, um pacto nacional, a nível político/público/privado/coletivo ou mesmo individual, de modo a passarmos da lamúria e auto comiseração para uma ação concertada ao jeito dos “reis” mencionados anteriormente.
A CNJP quer novamente afirmar esta Urgência. Será que, tal como no poema de Sophia, podemos pedir a cada um/a de nós e aos políticos mas também às organizações a que pertencemos e em que estamos implicados, que tornemos realidade o convite que nos deixa a poeta?

(...) E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo.

Lisboa, 24 de outubro de 2017


domingo, 5 de março de 2017

DEZ ANOS DEPOIS

      Passaram dez anos desde o referendo que conduziu à liberalização do aborto em Portugal. De um modo geral, os comentários a propósito deste aniversário deram a entender que a questão estará encerrada. Quiz-se salientar os benefícios da redução do aborto clandestino no plano da saúde pública e a redução progressiva do número de abortos Houve até quem dissesse que a nova lei contribuiu para a defesa da vida e o combate ao aborto (!). De entre os que com todo o empenho se bateram, há dez anos, pelo “não”, poderá haver quem se questione se terá valido a pena, se essa não será, então e agora, uma causa perdida. É verdade que algumas dessas pessoas não voltaram a falar no assunto. Outras continuam a falar com a mesma determinação que tinham há dez anos, mas talvez se sintam cada vez mais isoladas. Os mais satisfeitos serão certamente os que, desde essa altura, longe das atenções da comunicação social e sem que quase ninguém o saiba, se vão dedicando ao apoio às mulheres grávida em dificuldade e assim vão salvando muitas vidas.
            
          A análise das estatísticas deve suscitar, porém, outro tipo de conclusões. A redução do número de abortos reflete, em grande medida, a redução do número de mulheres em idade fértil e do número de nascimentos. Não podem comparar-se estes números com os das supostas estimativas de práticas de aborto clandestino antes da liberalização, pois estas nunca tiveram bases rigorosas e, com frequência, pelo seu exagero,  serviam de puro instrumento de propaganda (chegou a falar-se em mais de cem mil abortos por ano em Portugal).  A redução das complicações clínicas associadas ao aborto clandestino vem sendo acompanhada pelo aumento de complicações associadas ao aborto legal  (também houve mortes de mulheres devidas ao aborto legal, de que ninguém falou, ao contrário do que se verificava quando essas mortes ocorriam em abortos clandestinos). Tem crescido continuamente (chegou aos trinta por cento do número total de abortos) o número de abortos que representam uma repetição por parte da mesma mulher.
         
          A lógica que subjaz a qualquer política legislativa é a de que não se limita ou reduz uma qualquer prática quando esta é legalizada e facilitada ao máximo, como sucede atualmente com a prática do aborto entre nós. Se o número de abortos se reduz, não será certamente por causa da lei vigente, mas apesar da lei vigente. Esta levou a que em dez anos, com a colaboração ativa do Estado e dos serviços de saúde, se tenham perdido cento e setenta mil vidas. E nenhuma dessas perdas era inevitável. Não pode aceitar-se que se olhe para esses números (mesmo que sejam inferiores à média europeia) com satisfação (porque esse número «estabilizou» ou «está contido»...). Ninguém aceitaria que estivessemos satisfeitos com números dessa grandeza quando estão em causa outras causas de morte (acidentes de trabalho, de viação, violência doméstica, etc).
         
           E foi para evitar este panorama que muitos se bateram há dez anos. Pela minha parte, não tenho dúvidas de que valeu a pena e desse empenho nunca me arrependerei.
         
         Também não devemos pensar que se trata de uma causa perdida e encerrada. Ela exige, sim, mais do que um combate no plano político e legislativo, exige uma mudança cultural que, na perspetiva cristã, passa por uma “nova evangelização”. Até que vejamos no nascituro o “mais pobre os pobres” de que falava Teresa de Calcutá, ou “o mais pequeno dos meus irmãos” de que fala o Evangelho. Cuja vida merece todo o nosso cuidado e o nosso empenho, apesar da sua extrema vulnerabilidade, que chega ao ponto de nem sequer ter a capacidade de nos comover com a imagem do seu sofrimento.

                                                       Pedro Vaz Patto      

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Quaresma tempo de oração, fraternidade e comunhão

Caros Diocesanos! 
Acreditai, segui e imitai Cristo, Rosto do Pai e Redentor do homem. Durante a Quaresma, praticai o jejum, a oração e a esmola, esperando o Ressuscitado, que virá transformar o corpo mortal, para o tornar semelhante ao Seu Corpo Glorioso. Convido-vos a ler a Mensagem Quaresmal do Papa Francisco, sobre a parábola do rico opulento e do pobre Lázaro (Lc 16,19-20), vendo, na palavra e no outro, dons de Deus e abraçando o justo modo de agir, na solidariedade. A resposta ao outro e à palavra enriquece. No diálogo não há vencedores nem vencidos, mas enriquecidos. Trata-se de dois modos opostos de ver e de agir: o de cultivar a relação com o outro, que salva e enriquece, ou o de ver a relação de amor e dom ao outro, como limite e agressão. O Papa Francisco, optimista, diz que tanto o outro como a palavra são dons, ao contrário do pessimismo de Sartre que disse: “os outros são o inferno”. De facto, a relação e o encontro são fontes de alegria e comunhão, que nos enriquecem a nós e aos outros.

1.- O Papa enaltece a escuta, a acção de graças, a busca e o louvor de Deus, na oração; o auto-domínio, a ascese e moderação salutar do jejum; e a solidariedade, partilha de dons e afectos, dando o supérfluo a quem precisa. Louva o dom da Palavra e o dom da Pessoa, a relação pessoal, a solidariedade, que gera e potencia a riqueza e o mistério do ser humano, que toma consciência de si e cresce, na comunhão e no diálogo. A vida ganha-se e expressa-se, na relação, com Deus e os outros. Deus, Trindade de relações subsistentes, na Unidade Divina, criou-nos, para vivermos, em relação pessoal, com Ele e com os outros, no amor. No princípio, está sempre a verdadeira relação humana a estabelecer, a cultivar e expressar, com Deus e com os outros seres humanos. 

2.- Deus criou o homem e a mulher, para serem uma só carne e uma família. O género humano deve ser uma família alargada, na abertura e no diálogo, e reflexo do mistério divino da Unidade, na Trindade. Deus quer a comunhão dos humanos, como espelho da Unidade e da Trindade divinas, para fazer de todos um povo, na abertura e unidade. O pecado quebra a unidade, divide, gera aversão, inimizade e abandono, faz dos seres humanos inimigos uns dos outros, corta a relação valorativa e preferencial, com Deus e com o próximo. O sangue de Abel brada ao céu, contra Caim, rompe a solidariedade, cria a desunião. O culpado diz: sou eu, porventura, o guarda do meu irmão? (Gen. 4,9). A violência, a rejeição do cuidado e a indiferença colocam a sociedade, em terreno resvaladiço, aberto aos desmandos, injustiças e atropelos à dignidade humana e à liberdade, que deixam de ser reconhecidas, por aqueles que perdem a consideração pelo outro e absolutizam e endeusam o interesse próprio e o dinheiro.

3.- Que a Quaresma nos ajude a encontrar Deus, nos necessitados, certos de que Ele é acessível e quer ser encontrado na palavra, nos sacramentos e no ser humano. A vida é ascensão e encontro, com Deus, servindo os irmãos, conscientes de que, quer a palavra de Deus, quer os sacramentos, quer os outros são dons, que Deus nos dá, para nos relacionarmos, crescermos e construirmos, contribuindo para a vitória de Jesus Cristo sobre o pecado e a morte, vivendo de conversão em conversão e procurando ser, hoje, melhores do que ontem e, amanhã, melhores do que hoje, numa sociedade cada vez mais conforme aos desígnios de Deus.

4. O Jejum e a Abstinência devem entender-se e praticar-se, nos variados contextos, situações e necessidades, atendendo ao bem maior, ao supremo primado de Deus e às necessidades concretas das pessoas, segundo a justa hierarquia de valores a preservar e a fomentar. Assim, cada cristão verá aquilo de que se deve privar, tendo em conta as necessidades concretas dos necessitados, que vivem à sua volta, lembrando que os pobres são os preferidos de Deus, que quer ser reconhecido, servido e amado, neles. 

5.- A Diocese de Vila Real aponta duas necessidades emblemáticas, para as quais será canalizado, em partes iguais, o dinheiro recolhido da Renúncia Voluntária:
a) – O Centro de Apoio à Vida, para ajudar as Grávidas Adolescentes, na gravidez e na alimentação dos filhos. É uma valência da Santa Casa da Misericórdia de Vila Real, que deve ser ajudada, pois, não basta levantar o dedo e denunciar os atentados à vida, é preciso ajudar as pessoas, necessitadas. A vida é fundamental e irrenunciável direito e tudo é pouco o que se faz por ela. Exorto, pois, os fiéis a patrocinar esta causa.
b) – Outra é a tragédia dos irmãos nossos, sem eira nem beira, que nos batem à porta. Trata-se de ajudar, a nível local e diocesano, os Refugiados e, em especial, Crianças e Adolescentes. Esta missão está entregue à Caritas Diocesana.
Que Deus nos ajude a minorar o sofrimento dos necessitados e a ouvir o Supremo Juiz: “vinde benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado, desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recolhestes-me; estava nu e vestistes-me; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e fostes ter comigo” ( Mt. 25, 34-36 ).  

Que Deus, que é Amor, vos encha de paz e consolação, vos confirme na fé e na prática das boas Obras de Misericórdia, para crescerdes, na alegria e obterdes a glória eterna. Com votos de Santa e Feliz Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, peço que Ele vos abençoa e mantenha, sempre, no seu santo serviço. Amen.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

COLONIZAÇÃO IDEOLÓGICA

          O Papa Francisco já por várias vezes usou a expressão “colonização ideológica” para criticar a tentativa de imposição da “ideologia do género”, designadamente no âmbito do ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da mentalidade corrente. Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de que o género será uma escolha independente do sexo de nascença e de que não haverá modelos de família de referência, como não serão modelos de referência a paternidade e a maternidade.
            
           Parece-me adequada a expressão “colonização ideológica”, por dois motivos.

Por um lado, porque estamos perante uma notória tentativa de sobreposição da ideologia à realidade, confirmando aquilo que já se disse a este respeito: se os factos não confirmam a ideologia, «tanto pior para os factos».

Assim, em nome da ideologia, pretende-se negar, ou tornar irrelevante, a biologia, como se a pessoa não fosse uma unidade que a integra. Advoga-se a licitude das cirurgias de mudanças de sexo, e até do bloqueio da evolução pubertária em crianças e jovens pretensamente “transgénero”, tudo com base numa perceção subjetiva contrária aos dados objetivos. Especialistas consideram estas práticas uma «perigosa experiência de engenharia social», «baseada na ideologia e não na ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de género” em menores são superados, sendo que o bloqueio da evolução pubertária acarreta graves e irreversíveis danos. Também são muitos os casos de pessoas que se arrependem de cirurgias de “mudança de sexo” (ver www.sexchangeregret.com), mudança que acaba por ser ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é imutável. O psiquiatra Paul Mc Hugh afirma que essas práticas mascaram e exacerbam o problema da “disforia de género”, sem o resolver, que delas resultam apenas homens efeminados e mulheres masculinizadas, e não quaisquer verdadeiras mudanças de sexo.

Também é uma negação da realidade a regra (que se pretende impor) de frequência de casas de banho, balneários e dormitórios segundo o “género” e não segundo o sexo biológico: afinal, são só as diferenças biológicas, e não outras, as que justificam a separação.

Por outro lado, deve falar-se em “colonização” porque não estamos perante uma espontânea transformação de mentalidades, pretende-se que esta seja imposta coercivamente.

Leis como as que vigoram em várias comunidades autónomas espanholas impõem a “ideologia de género” até em escolas não estatais. Invocando essa legislação  contra a “homofobia” e “transfobia”, já têm sido apresentadas queixas criminais contra bispos (como os de Pamplona e de Valência) que expõem a doutrina da Igreja contrária a tal ideologia (sem ofender as pessoas). Pelos mesmos motivos, foi recentemente condenado em multa o diretor de um colégio espanhol.

Essas leis proibem também, sob pena de severas sanções, qualquer terapia de mudança de orientação sexual não desejada ou de mudança de identidade de género não desejada (mesmo que estas possam revelar-se eficazes). Mas já admitem, sem restrições, cirurgias de “mudança de sexo”.  Mais, nos Estados Unidos, o Gender Identity Mandate obsta à invocação da objeção de consciência por parte de médicos que se recusem a praticar tais cirurgias (questão que já chegou aos tribunais, tendo um tribunal do Texas reconhecido esse direito dos médicos, numa decisão recente).

As leis que, nos Estados Unidos, impõem a frequência de casas de banho, balneários e dormitórios segundo o “género”, e não segundo o sexo biológico, também se aplicam a escolas não estatais. Há quem tema pela segurança e privacidade, sua e dos seus filhos. Mas também há grandes empresas e organizações, assim como artistas famosos, que boicotam Estados que não seguem tal política Uma controvérsia (a WC War) que nos parece caricata, mas que também já invadiu os tribunais norte-americanos.

Em vários países já foram condenadas várias pessoas (pasteleiros, floristas ou propretários de restaurantes) que, por razões de consciência, se recusam a colaborar  em casamentos entre pessoas do mesmo sexo (sem discriminar pessoas homossexuais noutro tipo de serviços). Há propostas de leis de Estados norte-americanos que pretendem garantir esse direito, em nome da liberdade religiosa e de consciência. Mas tais Estados também enfrentam ameaças de boicote por parte de grandes empresas, o que leva vários políticos a abandonar tais propostas.

Por tudo isto, não será exagero falar em “colonização ideológica”. 

                                                       Pedro Vaz Patto  




sábado, 21 de janeiro de 2017

MARTÍRIO E FRAQUEZA


Recordo-me bem de ter lido Silêncio, do autor japonês Shusaku Endo, já lá vão uns bons anos. Ficou-me retido o fascínio pela profundidade da análise do drama existencial do protagonista, mas também alguma perplexidade a respeito da mensagem do livro. Os comentários (contrastantes entre si), que agora li, ao recente filme de Martin Scorcese baseado nesse livro confirmam essa mesma perplexidade.
Nun desses  comentários, o bispo norte-americano Robert Barren afirma que «como qualquer grande filme ou novela, Silêncio resiste a uma interpretação unívoca». Também isso revelam esses comentários.
Trata-se da história de dois missionários jesuitas portugueses que, no século XVII, percorrem o Japão em busca de um outro missionário, Cristovão Ferreira, o qual, de acordo com as crónicas da época, depois de ter sido mentor de muitos outros missionários jesuitas, não resistiu à tortura e renegou a sua fé, no período de violenta perseguição aos cristãos. Esse período de perseguição seguiu-se a um outro, de notável expansão missionária (em sessenta anos, o número de cristão atingiu os trezentos mil) que chegou a ser denominado “século cristão” do Japão.
O protagonista, Sebastião Rodrigues, dilacerado pela dúvida, vem a seguir o caminho de Cristovão Ferreira. Cede à chantagem de que é vítima: se pisar uma imagem de Jesus Cristo, sinal da sua apostasia, poderá salvar da morte um grupo de japoneses pobres convertidos ao cristianismo. O seu gesto pode ser objeto de várias leituras: uma cedência à sua própria fragilidade, ou um ato de suprema compaixão para com esses cristãos (perde-se para os salvar). Parece seguir a voz do próprio Jesus Cristo, que lhe diz para assim proceder, pois foi para ser pisado e crucificado que Ele veio ao mundo. Mas resta a dúvida se será mesmo essa a vontade de Deus, ou se essa não será uma forma de auto-justificação.
O livro foi, ao tempo da sua publicação, nos anos sessenta, objeto de severas críticas por parte de católicos japoneses. O bispo de Nagasaqui desaconselhou a sua leitura aos seus fiéis. Parece que contém uma justificação da apostasia, não valorizando o ato heróico dos mártires japoneses da época.
Agora, a propósito do filme, também já se escreveram críticas do mesmo teor.
A apostasia não se justifica em caso algum, mesmo para salvar vidas, porque os fins não justificam os meios. No combate interior de Sebastião Rodrigues, a dúvida e a fragilidade levam a melhor sobre a fidelidade dos mártires. Nesta linha, questionam a coerência cristão da mensagem do livro e do filme, entre outros, o bispo Robert Barron (em Catholic World Report), Brad Minner (em The Catholic Thing), John Paul Meenan (em Crisis Magazine) e J. D. Flynn (em First Things).
Por isso, o comentário ao filme do departamento de crítica cinematográfica da Conferência Episcopal norte-americana (Catholic News Service) afirma que o filme é adequado a pessoas de fé sólida que saibam fazer um discernimento maduro.
Compreendo essas críticas. A mensagem do livro e do filme pode ir de encontro à mentalidade contemporânea, hedonista, pouco exigente, oposta à dos mártires, dispostos da dar a vida pela sua fé. Essa mentalidade não pode entender as palavras de Jesus no Evangelho: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-me. (...) Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa há de salvá-la» (Lc 9, 23-24).
O martírio percorre a história da Igreja. «O sangue dos mártires é semente de cristãos» - dizia Tertuliano nos primeiros tempos do cristianismo. E – disse já várias vezes o Papa Francisco – são hoje mais numerosos os mártires do que o eram nos primeiros tempos do cristianismo. O cristãos assassinados pelo Daesh e pelo Boko Haran poderiam ter salvo a sua vida se tivessem renegado a sua fé (e poderiam tê-lo feito só externamente). Tal como poderiam ter evitado a fuga e a perda de todos os seus bens muitos  cristãos da Síria e do Iraque hoje refugiados. Mas – disse com veemência a Irmã Maria de Guadalupe, que esteve há pouco tempo entre nós - «eles sabem que o Céu não se negoceia».
Era esta a fibra dos mártires japoneses do século XVII, missionários e japoneses convertidos ao cristianismo. O livro e o filme parecem não os compreender ou valorizar devidamente. O martírio dos japoneses nativos é sinal eloquente de que, apesar das  falhas no processo de inculturação do cristianismo, este não deixou de criar raízes no Japão (o que também é questionado no livro e no filme).
Mas outra leitura do livro e do filme é possível.
Convirá referir que Martin Scorcese foi aconselhado pelo sacerdote jesuíta James Martin e que os dois atores principais procuraram estudar e vivenciar a espiritualidade jesuita participando em retiros espirituais.
O final da história também deixa alguns sinais de que o protagonista, Sebastão Rodrigues, não terá renegado completamente a sua fé.   
Afirma Enrique Chuvieco (em Religion en Libertad): «Silêncio é um bom filme católico, onde se reconhece – num dos protagonistas – através de um extenuante e doloroso caminho, que Deus atua em cada alma de forma distinta e que, em situações tão extremas, está silenciosamente presente no sofrimento, como esteve com o seu Filho».
Para Juan Manuel de Prada (em Magnificat.net), Sebastião Rodrigues «nunca saberá de todo se cedeu aos suplícios de compaixão dos camponeses, ou se o fez para justificar a sua fraqueza, mas saberá com certeza plena que Cristo continua a amá-lo, como, sem dúvida, amou Judas até ao fim»; com ele «descobrimos que não existem fortes ou fracos, pois quem poderá assegurar que os fracos sofrem menos do que os fortes?»
E o Pe. João Maria Brito, SJ, no Observador: «A fé também cresce nestas linhas curvas, nos pontos de rutura das nossas vidas em que sabemos tão pouco, em que nos restam tão poucas certezas. Aí, talvez o nosso grito por Deus seja mais fundo e O possamos escutar, ainda que não O consigamos ouvir de um modo límpido (...); entrar nas sombras mais profundas da fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se cala para sempre».
Ou seja, e em resumo, Deus não abandona (e o seu silêncio é só aparente) quem tem dúvidas, quem fraqueja, quem não consegue levar a sua fidelidade até às últimas consequências.
Com esta leitura, o livro de Endo e o filme de Scorcese não desiludirão os cristãos.
                                                                       Pedro Vaz Patto


     

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

TUDO SE PERDE COM A GUERRA, TUDO SE GANHA COM A PAZ

Salienta o Papa Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, que a violência não permite alcançar objetivos de valor duradouro e desencadeia uma espiral de morte infindável, que beneficia apenas poucos “senhores da guerra”. Há, então, que buscar resolver as controvérsias pelas vias da razão, das negociações baseadas no direito, na justiça e na equidade. A não-violência deve tornar-se o estilo característico dos relacionamentos e da ação política.
A não-violência a que alude o Papa não se confunde com a rendição ou a passividade; pelo contrário, é ativa e criativa e exige o máximo empenho e coragem. É potente e eficaz, como o revelam os exemplos históricos de Gandhi na libertação da Índia, Martin Luther King Jr contra a discriminação racial, ou João Paulo II e outros na queda do comunismo.
Haverá quem considere que esta é uma visão irrealista, que a guerra continua a ser um meio de reolução de muitos conflitos.Ou que será fraco o eco destas palavras do Papa junto dos políticos. Alguns destes, a seu tempo, responderam aos apelos de João Paulo II contra a guerra do Iraque dizendo que respeitavam essa sua posição, mas tinham outras responsabilidades como políticos, diferentes das de um líder religioso... E não seguiram esse apelo (teria sido melhor se o tivessem seguido- podemos afirmar hoje com certeza).
Mas não será irrealismo maior, e uma irresponsabilidade também no plano da eficácia política, pensar que a guerra resolve os complexos problemas com que nos deparamos hoje? Quase sempre a guerra cria mais problemas do que aqueles que possa resolver. Se pode ser legítima para “desarmar o agressor”, sê-lo-á em situações excecionais (e cada vez mais excecionais, se encararmos os progressos do direito internacional como uma conquista da civilização), sendo que parece continuar a ser vista como regra. «Com a guerra tudo se perde, com a paz tudo se ganha»- também afirmou noutras ocasiões o Papa.
Disso é prova evidente a atual guerra na Síria (mas também o são as anteriores guerras no Iraque e na Líbia). Dela resultam mortos, desalojados, refugiados e um verdadeiro caos social e político (e as suas consequências teriam sido ainda mais graves se tivesse havido um maior envolvimento das potências ocidentais, o que foi evitado, em grande medida, graças aos apelos do Papa Francisco). Os ódios acumulados e o fosso entre as várias comunidades são agora muito maiores. Em nada melhorou a situação desse país depois destes anos de guerra, e independentemente do seu desfecho. «Ninguém é vencedor nesta guerra» - afirmou António Guterres no discurso da sua tomada de posse como secretário-geral da O.N.U.. O desafio é, agora, precisamente, o que indica o Papa na sua mensagem: negociar com base na razão, no direito, na justiça e na equidade. Só assim poderão ser curadas as feridas e superado o caos social e político.
A guerra na Síria também não serviu para implementar a democracia, como alguns pretendiam (e o mesmo se poderá dizer das guerras no Iraque e na Líbia). Os povos do Médio Oriente não estão condenados a viver em ditadura. Quando oiço cristãos dessa região enaltecer ditadores porque garantiam a sua liberdade religiosa, fico algo perplexo, mas compreendo: na verdade, a chamada “primavera árabe” tem contribuido para o terrível êxodo dos cristãos de uma terra que habitam desde os primeiros tempos do cristianismo. É que a democracia não implica só a regra da maioria. Esta pode originar o totalitarismo se não implicar também a limitação do poder e, sobretudo, o respeito pelos direitos humanos, de entre os quais assume particular relevo o da liberdade religiosa.  E supõe um substrato social e cultural que não se impõe por decreto, não se improvisa e se constrói pacientemente. E também para esse efeito, a guerra cria mais problemas do que aqueles que possa resolver.
                                                                    Pedro Vaz Patto