Recordo-me
bem de ter lido Silêncio, do autor japonês Shusaku Endo, já lá
vão uns bons anos. Ficou-me retido o fascínio pela profundidade da análise do
drama existencial do protagonista, mas também alguma perplexidade a respeito da
mensagem do livro. Os comentários (contrastantes entre si), que agora li, ao recente
filme de Martin Scorcese baseado nesse livro confirmam essa mesma perplexidade.
Nun
desses comentários, o bispo
norte-americano Robert Barren afirma que «como qualquer grande filme ou novela,
Silêncio resiste a uma interpretação
unívoca». Também isso revelam esses comentários.
Trata-se
da história de dois missionários jesuitas portugueses que, no século XVII, percorrem
o Japão em busca de um outro missionário, Cristovão Ferreira, o qual, de acordo
com as crónicas da época, depois de ter sido mentor de muitos outros
missionários jesuitas, não resistiu à tortura e renegou a sua fé, no período de
violenta perseguição aos cristãos. Esse período de perseguição seguiu-se a um
outro, de notável expansão missionária (em sessenta anos, o número de cristão
atingiu os trezentos mil) que chegou a ser denominado “século cristão” do
Japão.
O
protagonista, Sebastião Rodrigues, dilacerado pela dúvida, vem a seguir o
caminho de Cristovão Ferreira. Cede à chantagem de que é vítima: se pisar uma
imagem de Jesus Cristo, sinal da sua apostasia, poderá salvar da morte um grupo
de japoneses pobres convertidos ao cristianismo. O seu gesto pode ser objeto de
várias leituras: uma cedência à sua própria fragilidade, ou um ato de suprema
compaixão para com esses cristãos (perde-se para os salvar). Parece seguir a
voz do próprio Jesus Cristo, que lhe diz para assim proceder, pois foi para ser
pisado e crucificado que Ele veio ao mundo. Mas resta a dúvida se será mesmo
essa a vontade de Deus, ou se essa não será uma forma de auto-justificação.
O
livro foi, ao tempo da sua publicação, nos anos sessenta, objeto de severas
críticas por parte de católicos japoneses. O bispo de Nagasaqui desaconselhou a
sua leitura aos seus fiéis. Parece que contém uma justificação da apostasia,
não valorizando o ato heróico dos mártires japoneses da época.
Agora,
a propósito do filme, também já se escreveram críticas do mesmo teor.
A
apostasia não se justifica em caso algum, mesmo para salvar vidas, porque os
fins não justificam os meios. No combate interior de Sebastião Rodrigues, a
dúvida e a fragilidade levam a melhor sobre a fidelidade dos mártires. Nesta
linha, questionam a coerência cristão da mensagem do livro e do filme, entre
outros, o bispo Robert Barron (em Catholic
World Report), Brad Minner (em The
Catholic Thing), John Paul Meenan (em Crisis
Magazine) e J. D. Flynn (em First
Things).
Por
isso, o comentário ao filme do departamento de crítica cinematográfica da
Conferência Episcopal norte-americana (Catholic
News Service) afirma que o filme é adequado a pessoas de fé sólida que
saibam fazer um discernimento maduro.
Compreendo
essas críticas. A mensagem do livro e do filme pode ir de encontro à
mentalidade contemporânea, hedonista, pouco exigente, oposta à dos mártires,
dispostos da dar a vida pela sua fé. Essa mentalidade não pode entender as
palavras de Jesus no Evangelho: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-me. (...) Pois quem quiser salvar a
sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa há de
salvá-la» (Lc 9, 23-24).
O
martírio percorre a história da Igreja. «O sangue dos mártires é semente de
cristãos» - dizia Tertuliano nos primeiros tempos do cristianismo. E – disse já
várias vezes o Papa Francisco – são hoje mais numerosos os mártires do que o
eram nos primeiros tempos do cristianismo. O cristãos assassinados pelo Daesh e pelo Boko Haran poderiam ter salvo a sua vida se tivessem renegado a sua
fé (e poderiam tê-lo feito só externamente). Tal como poderiam ter evitado a
fuga e a perda de todos os seus bens muitos
cristãos da Síria e do Iraque hoje refugiados. Mas – disse com veemência
a Irmã Maria de Guadalupe, que esteve há pouco tempo entre nós - «eles sabem
que o Céu não se negoceia».
Era
esta a fibra dos mártires japoneses do século XVII, missionários e japoneses
convertidos ao cristianismo. O livro e o filme parecem não os compreender ou
valorizar devidamente. O martírio dos japoneses nativos é sinal eloquente de
que, apesar das falhas no processo de
inculturação do cristianismo, este não deixou de criar raízes no Japão (o que
também é questionado no livro e no filme).
Mas
outra leitura do livro e do filme é possível.
Convirá
referir que Martin Scorcese foi aconselhado pelo sacerdote jesuíta James Martin
e que os dois atores principais procuraram estudar e vivenciar a
espiritualidade jesuita participando em retiros espirituais.
O
final da história também deixa alguns sinais de que o protagonista, Sebastão
Rodrigues, não terá renegado completamente a sua fé.
Afirma
Enrique Chuvieco (em Religion en Libertad):
«Silêncio é um bom filme católico,
onde se reconhece – num dos protagonistas – através de um extenuante e doloroso
caminho, que Deus atua em cada alma de forma distinta e que, em situações tão
extremas, está silenciosamente presente no sofrimento, como esteve com o seu
Filho».
Para
Juan Manuel de Prada (em Magnificat.net),
Sebastião Rodrigues «nunca saberá de todo se cedeu aos suplícios de compaixão
dos camponeses, ou se o fez para justificar a sua fraqueza, mas saberá com
certeza plena que Cristo continua a amá-lo, como, sem dúvida, amou Judas até ao
fim»; com ele «descobrimos que não existem fortes ou fracos, pois quem poderá
assegurar que os fracos sofrem menos do que os fortes?»
E
o Pe. João Maria Brito, SJ, no Observador:
«A fé também cresce nestas linhas curvas, nos pontos de rutura das nossas vidas
em que sabemos tão pouco, em que nos restam tão poucas certezas. Aí, talvez o
nosso grito por Deus seja mais fundo e O possamos escutar, ainda que não O
consigamos ouvir de um modo límpido (...); entrar nas sombras mais profundas da
fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se
cala para sempre».
Ou
seja, e em resumo, Deus não abandona (e o seu silêncio é só aparente) quem tem
dúvidas, quem fraqueja, quem não consegue levar a sua fidelidade até às últimas
consequências.
Com
esta leitura, o livro de Endo e o filme de Scorcese não desiludirão os
cristãos.
Pedro Vaz Patto
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