sexta-feira, 13 de novembro de 2020

FRATERNIDADE, JUSTIÇA E PERDÃO


Para quem, como eu, lida quotidianamente com a justiça criminal, o tema da relação entre a justiça e o perdão assume uma grande relevância. Tenho refletido e escrito sobre ele à luz do Evangelho e da doutrina social da Igreja. Um bom contributo para essa reflexão nos chega agora através da encíclica Fratelli tutti.

Muitas vezes tenho citado, a este respeito, uma notável mensagem de São João Paulo II, a sua mensagem para Dia Mundial da Paz de 1 de janeiro de 2002 Não há Paz sem Justiça, não há Justiça sem Perdão. Nela se afirma:

«Muitas vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada, mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)».

Por outro lado, o perdão não tem uma dimensão puramente individual, moral ou religiosa, tem também uma dimensão social: «Como ato humano, o perdão é, antes de mais, uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus semelhantes. Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade mais justa e solidária.» (n.9).

O que nos diz agora, a este respeito, a Fratelli tutti?

Diz-nos que «a verdade, a misericórdia e justiça são essenciais para construir a paz e cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (n. 227).

             Há que evitar quer o fatalismo e a inércia perante a injustiça, quer a violência e a intolerância (n. 237)

Quando Jesus afirma que não veio «trazer a paz, mas a espada» (Mt 10. 34-36), não convida a provocar conflitos, mas a suportar o conflito inevitável, para que o respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz familiar ou social (n. 240). A verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes (n. 244). Repetindo a máxima que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma que «a unidade é superior ao conflito», o que não significa ignorar o conflito, mas resolvê-lo «num plano superior que preserva as preciosas potencialidades das polaridades em contraste» (n. 245).

             Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as (n. 241).

             Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem da injustiça do esquecimento» (n. 252). A esta luz deve ser encarado o que depois se afirma a propósito da pena de morte e da pena de prisão perpétua (uma «pena de morte escondida» - assim é qualificada esta pena).

              De resto, a vingança «nunca sacia verdadeiramente a insatisfação da vítima» (n. 251). 

O perdão não é algo que possa ser imposto às vítimas. Na esfera pessoal, alguém pode renunciar a exigir um castigo, mesmo que a sociedade e a justiça o busquem legitimamente. Mas ninguém pode arrogar-se o direito de perdoar em nome dos outros. «É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento» (n. 246).         

             Mas o perdão é sempre possível. «Mesmo que haja algo que jamais pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar» (n. 250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).

             De todas estas ideias, o que deve colher quem lida com a justiça criminal?

             Que o perdão não anula as exigências da justiça, mas vai para além delas e permite alcançar uma mais plena harmonia social. Que há que distinguir, sem separar completamente, a dimensão pessoal e a dimensão social do perdão. Por isso, o perdão não pode ser imposto à vítima, mas o sistema judicial deve deixar espaço para ele (através da justiça restaurativa, por exemplo). A dimensão social do perdão traduz-se na reconciliação entre o agente do crime e a sociedade (para além da vítima). Também essa reconciliação não pode ser imposta ao agente do crime, mas deve ser proposta e promovida (através de penas com um alcance socialmente positivo, como a de trabalho a favor da comunidade, que não se confunde com “trabalho forçado”).

             A fraternidade passa por este caminho de justiça, perdão e reconciliação. Quem conhece de perto a realidade da criminalidade sabe que o caminho a percorrer é longo, não cede a ilusões e utopias, mas também não pode ceder ao conformismo e ao desânimo.

                                                                                                     Pedro Vaz Patto

TODOS FILHOS DE UM ÚNICO PAI


             Têm sido muitos os elogios à encíclica Fratelli tutti. Até agora, as críticas que li vêm apenas de setores católicos cada vez mais críticos do Papa Francisco.

             Um desses elogios proveio da Maçonaria espanhola (loja do Grande Oriente), que enalteceu o facto de a encíclica aderir ao seu ideal de fraternidade universal, superando a posição tradicional da Igreja Católica, que desse ideal se distanciava. Eis, então, um motivo para tais setores criticarem a visão da encíclica, acusando-a de refletir esse ideal de fraternidade maçónico, puramente humano e horizontal, sem abertura a Deus ou com equiparação de todos os credos religiosos.

             Essa crítica não tem, porém, razão de ser.

             Na leitura da encíclica Fratelli tutti deverá ser salientado, antes de tudo, o que nela se afirma a respeito do fundamento último da fraternidade. «Sem uma abertura ao Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós» (n. 272).

             Li há dias um comentário à encíclica de um teólogo muçulmano, que salientava excertos do Corão na linha de um ideal de fraternidade. Mas em nenhum desses excertos se encontra esta visão de um Deus que é Pai de todos.

             Mais profundamente, afirma também a encíclica (n. 85): Quem acredita que Deus ama cada ser humano com amor infinito confere-lhe uma dignidade também infinita; se Cristo derramou o seu sangue por todos, ninguém pode ser excluído do seu amor universal; a fonte suprema desse amor universal é a própria vida íntima de Deus, uma unidade de três Pessoas que é origem e modelo de toda a vida comunitária.

             Citando a encíclica Caritas in veritate, de Bento XVI, afirma Francisco que «a razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade» (n. 272).

             E citando a encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, afirma Francisco: «Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. (…) Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder (…). A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser encontrada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar; seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado.» (n. 273).  

Depois de relembrar que a Igreja valoriza o que de verdadeiro e santo existe nas outras religiões, Francisco esclarece que, como cristãos, «se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados» (n. 277).

É certo que na encíclica não é dada a estas verdades tanto destaque como é dado a questões de ordem social e política, as quais também têm tido mais eco na comunicação social. Penso que é assim porque o propósito do Papa, enunciado logo na introdução da encíclica, é o de com esta lançar pontes entre fiéis de todas as religiões, crentes e não crentes. Por isso, aborda questões com que muitos não cristãos possam identificar-se (e, de facto, se têm identificado). Mas de modo algum estas verdades são ocultadas ou desvalorizadas.

                                                                                     Pedro Vaz Patto