terça-feira, 1 de junho de 2021

TODOS IRMÃOS - UMA LEITURA DA FRATELLI TUTTI

 

TODOS IRMÃOS

 

             Têm sido muitos os elogios à encíclica Fratelli tutti. Numa sessão da Assembleia Legislativa da Madeira, teceram tais elogios representantes de todos os partidos políticos com assento nessa Assembleia. E assim também representantes de todos os grupos parlamentares da Assembleia da República, que receberam de um grupo de católicos (onde eu me incluía) a oferta a cada um dos deputados de um exemplar da encíclica (uma iniciativa que partiu de Eugénio Fonseca). Ouvi a uma dirigente comunista, depois de aludir à sua formação católica juvenil e ao facto de há muito estar afastada da Igreja, manifestar o seu entusiasmo pelo testemunho e mensagem do Papa Francisco, reforçado depois da leitura desta encíclica. Até agora, as críticas que li vêm apenas de setores católicos cada vez mais críticos do Papa Francisco.

             Um desses elogios proveio da Maçonaria, em Espanha e na Itália (lojas do Grande Oriente), que enalteceu o facto de a encíclica aderir ao seu ideal de fraternidade universal, superando a posição tradicional da Igreja Católica, que desse ideal se distanciava. Eis, então, um motivo para tais setores criticarem a visão da encíclica, acusando-a de refletir esse ideal de fraternidade maçónico, puramente humano e horizontal, sem abertura a Deus ou com equiparação de todos os credos religiosos.

             Essa crítica não tem, porém, razão de ser.

             Na leitura da encíclica Fratelli tutti deverá ser salientado, antes de tudo, o que nela se afirma a respeito do «fundamento último» da fraternidade. «Sem uma abertura ao Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós» (n. 272).

             A respeito deste «fundamento último da fraternidade», afirma o filósofo espanhol Jesus Moran[1]. «Esta é a pregunta com a qual o cristianismo interpela a cultura contemporânea: é possível uma fraternidade sem o Pai? E, poderemos dizer, sem a Mãe? O cristianismo esvazia-se de sentido e torna-se culturalmente insignificante se abdica de fazer, com coragem, esta pergunta, Ao fazê-lo, o cristão não se distancia dos seus companheiros de viagem na história, diversamente crentes ou não crentes, mas dá sem imposições aquilo que constitui os seu tesouro mais precioso, uma transcendência com um rosto pessoal, que fundamenta em profundidade todo o humano».

             Li há algum tempo um comentário à encíclica de um teólogo muçulmano, que salientava excertos do Corão na linha de um ideal de fraternidade (https://setemargens.com/a-enciclica-fratelli-tutti-e-o-alcorao). Mas em nenhum desses excertos se encontra esta visão de um Deus que é Pai de todos.

             Mais profundamente, afirma também a encíclica (n. 85): Quem acredita que Deus ama cada ser humano com amor infinito confere-lhe uma dignidade também infinita; se Cristo derramou o seu sangue por todos, ninguém pode ser excluído do seu amor universal; a fonte suprema desse amor universal é a própria vida íntima de Deus, uma unidade de três Pessoas que é origem e modelo de toda a vida comunitária.

             Citando a encíclica Caritas in veritate, de Bento XVI, afirma Francisco que «a razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade» (n. 272).

             E citando a encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, afirma Francisco (dizendo que se trata de um «texto notável»): «Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. (…). A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser encontrada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar; seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria» (n. 273).

             Este fundamento transcendente dos direitos humanos, que corresponde à visão clássica do direito natural, assume hoje grande relevância, pois é posto em causa em questões controversas, como o aborto, a eutanásia ou a redefinição do conceito de família.

             Depois de relembrar que a Igreja valoriza o que de verdadeiro e santo existe nas outras religiões, Francisco esclarece que, como cristãos, «se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher. Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos» (n. 277).

É certo que na encíclica não é dada a estas verdades tanto destaque como é dado a questões de ordem social e política, as quais também têm tido mais eco na comunicação social. Penso que é assim porque o propósito do Papa, enunciado logo na introdução da encíclica, é o de com esta lançar pontes entre fiéis de todas as religiões, crentes e não crentes: «Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade» (n. 6). Por isso, a encíclica aborda questões com que muitos não cristãos possam identificar-se (e, de facto, se têm identificado). Mas de modo algum estas verdades são ocultadas ou desvalorizadas.

Num comentário a este aspeto, que considera inovador em relação à estrutura tradicional das encíclicas anteriores à Laudato Si`(nas quais era dado mais destaque à fundamentação teológica) afirma Giuseppe Savagnone, diretor da Pastoral da Cultura da diocese de Palermo, em texto publicado em português no portal do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (https://www.snpcultura.org/fratellI_tuttio_desafio_de_fazer _sair_evangelho_e_igreja_do_gueto.html), que a intenção fundamental do Papa é a de «fazer sair a Igreja e o seu anúncio do Evangelho do gueto em que a cultura do mundo moderno há muito os relegaram, e apontar para valores que essa mesma cultura acolheu e celebrou, para mostrar as suas raízes cristãs e denunciar a incoerência da sociedade atual em relação a eles (…); mostrar que a Igreja tem alguma coisa a dizer ao mundo contemporâneo, não em termos confessionais, mas para responder a um problema que está diante dos olhos de todos, crentes e não crentes, evidenciando que a fraternidade, central na mensagem cristã, é também um valor humano, e que um mundo que não a conhece – como o nosso – é desumano».

O ideal de fraternidade universal que é apresentado na encíclica confronta-se hoje com muitas ameaças e desafios. Um deles é o do ressurgir dos nacionalismos, sob várias formas e em muitos contextos, questão que nela é analisada com particular desenvolvimento e profundidade.

Esse nacionalismo assume, muitas vezes, características que já têm sido designadas como de um nacionalismo de exclusão, hostil ao estrangeiro, sob o lema de nós primeiro. A encíclica fala, a este respeito, em «nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos» (n.º 11). Como já o fez noutras ocasiões, o Papa censura estas correntes com clareza e sem subtilezas. Mas, ao mesmo tempo, compreende as exigências de salvaguarda das identidades nacionais que podem ser pretexto para a adesão a tais correntes. E dá uma resposta, como já tinha feito noutras ocasiões, desta vez mais aprofundada.

A encíclica salienta, por um lado, o fundamento bíblico dessa abertura à fraternidade universal e, por outro lado, procura desfazer os receios de que ela leve à perda das identidades nacionais e culturais diante de uma globalização uniformizadora. Nesta perspetiva é encarado o fenómeno das migrações, que também é encarado à luz de critérios de justiça social.

             Quanto ao fundamento bíblico da abertura à fraternidade que não exclui os estrangeiros, são evocadas (no n.º 61) passagens do Antigo Testamento alusivas à memória que o povo judeu conserva de ter vivido como estrangeiro no Egito, segundo a regra de tratar os outros como gostaríamos que nos tratassem a nós. «O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito» (Lv 19, 33-34).

E é apresentada a parábola do Bom Samaritano situando-a no contexto judaico, de forte hostilidade para com os samaritanos: uma forte provocação no sentido da superação de preconceitos e barreiras históricas e culturais (n. 83). Se transpuséssemos tal parábola para os tempos de hoje, talvez pudéssemos substituir, nalguns países europeus, a figura do “bom samaritano” pela do “bom muçulmano”, e, em Portugal, talvez pela do “bom cigano”…

                 A encíclica salienta como a abertura a outras culturas é enriquecedora para pessoas e povos: «uma pessoa e um povo só são fecundos se souberem criticamente integrar no seu seio a abertura aos outros» (n. 41). A globalização não deve uniformizar e destruir «a riqueza e singularidade de cada pessoa e de cada povo» (n. 100). Mas uma cultura que se fecha pode sofrer de “esclerose”. «As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas, para que o mundo não fique mais pobre»; «(…) porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades» (n. 134). «Não me encontro com o outro se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico»; «cada qual ama e cuida, com particular responsabilidade, da sua terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria casa» (n. 143). Porém: «Ao olhar para si mesmo do ponto de vista do outro, de quem é diferente, cada um pode reconhecer nele as peculiaridades da sua própria pessoa e cultura, as suas riquezas, peculiaridades e limites»; «as outras culturas não constituem inimigos de quem seja preciso defender-se, mas reflexos distintos da riqueza inexaurível da vida humana» (n. 147); «uma sã abertura não ameaça a identidade, porque ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades, segundo modalidades próprias», o que provoca «o nascimento de uma nova síntese, que, em última análise, beneficia a todos» (n. 148). Isto é assim porque nenhum «povo ou cultura pode obter tudo de si mesmo» (n. 150).

Como em muitas outras ocasiões, o Papa Francisco recorre às imagens da esfera e do poliedro para indicar o rumo que deveria seguir a globalização. «O universal não deve ser o domínio homogéneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante, que perderá as cores do poliedro» (n. 144). Na imagem do poliedro, «cada um é respeitado no seu valor, o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma dela», ao contrário da imagem da «esfera global que aniquila», ou da «parte isolada que esteriliza» (n. 145).

             Em conclusão: «Toda a cultura saudável é por natureza aberta e acolhedora, não estática» (n. 146). Está aqui a resposta do Papa aos receios de que se percam as riquezas das identidades nacionais e culturais (que o Papa de modo algum ignora ou despreza) com a convivência e diálogo com outros povos e culturas.

Não podemos esquecer que a identidade nacional que muitas vezes se invoca para justificar o nacionalismo de exclusão está ligada a uma identidade cultural cristã. O perigo é, então o de reduzir as raízes culturais cristãs a uma simples marca identitária instrumentalizada em função de estratégias políticas que contradizem a própria mensagem cristã na sua intrínseca abertura à fraternidade universal. 

A respeito da cultura cristã da Europa, afirmou Francisco no discurso que deixou escrito quando visitou a Universidade Roma Tre, em 17 de fevereiro de 2017: «Considerando que a primeira ameaça à cultura cristã da Europa vem precisamente do seio da Europa, o fechamento em si mesmos ou na própria cultura nunca é a solução para voltar a dar esperança e realizar uma renovação social e cultural. Uma cultura consolida-se através da abertura e do confronto com as outras culturas, desde que haja uma consciência clara e madura dos próprios princípios e valores». É esta consciência clara e madura dos seus princípios e valores que tem faltado à Europa- poderemos acrescentar. E que o nacionalismo de exclusão não vem reforçar, pelo contrário, porque nega a substância desses princípios e valores, mesmo que se apegue a símbolos externos, como a exposição pública do crucifixo.

À luz destes princípios, é encarado também o fenómeno das migrações, cada vez mais incontornável no mundo de hoje. Mas este é também encarado numa perspetiva de justiça social, à luz do princípio do destino universal dos bens. Os bens de um país não devem ser negados a quem provém de outro lugar (n. 124). Com as migrações, todos podem ganhar, porque todos perdem quando em qualquer lugar há pessoas e povos que não desenvolvem todo o seu potencial e toda a sua beleza por causa da pobreza (n. 137). Mas o acolhimento autêntico supõe a gratuidade que falta na atitude utilitarista de países que pretendem receber apenas cientistas e investidores (n. 139)[2]. Cada nação é co-responsável pelo desenvolvimento de todas as pessoas, o que pode traduzir-se de dois modos, que não se excluem mutuamente: no acolhimento de imigrantes e no contributo para o desenvolvimento dos países de origem destes (n. 125). É verdade que o ideal seria que a emigração não fosse necessária, mas enquanto não houver sérios progressos no sentido do desenvolvimento dos países pobres, há que reconhecer o direito de cada pessoa a encontrar um lugar onde não só possa satisfazer necessidades básicas, mas também realizar-se plenamente como pessoa (n. 129). Aqui reside uma resposta a quem invoca o direito de não emigrar (de se realizar plenamente no seu próprio país, assim se evitando que dos países pobres fujam os mais jovens e qualificados) para justificar a recusa do direito a emigrar. São duas facetas de um mesmo direito ao desenvolvimento, que não se excluem mutuamente, e ambas devem ser tidas em consideração.

             A experiência histórica de Portugal ilustra bem estas ideias da encíclica Fratelli tutti: como a nossa cultura se enriqueceu, ao longo da história, com os contactos com outras culturas e como a emigração contribuiu para o desenvolvimento do país e dos portugueses. Até agora não se tem notado entre nós o clima de hostilidade aos estrangeiros e imigrantes que se tem notado noutros países europeus. Será uma grave perda e um grave retrocesso se assim deixar de ser.

             Muitos outros são os temas abordados nesta encíclica que merecem destaque.

             Podemos analisar o que dela podemos retirar como luz para colher lições da pandemia que nos atinge há mais de um ano e para enfrentar as suas consequências. Vê-se que a pandemia surgiu precisamente quando a redação da encíclica estava a decorrer e ela reflete já algumas dessas lições.

             Assim, por exemplo, a redescoberta do valor da vida dos mais velhos. Não é por a vida se aproximar do seu termo que perde valor («o valor da vida não tem variações». afirmou o cardeal Tolentino Mendoça a propósito da seletividade dos cuidados de saúde). Para preservar essa vida, muitos sacrifícios se fizeram e se justificaram.

Os mais velhos têm sido das principais vítimas daquela “cultura do descarte” muitas vezes denunciada pelo Papa Francisco. Reafirma ele nesta encíclica (n. 19): «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos).» E diz, referindo-se à pandemia (n. 19): «Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não pode alcançar».

                 Na sequência destas ideias expostas na Fratelli tutti, parece-me importante destacar o documento da Academia Pontifícia pela Vida A Velhice. O Nosso Futuro – A condição dos idosos depois da pandemia[3]  Nele se afirma: «Em qualquer caso, ser idoso é um dom de Deus e um enorme recurso, uma conquista que deve ser salvaguardada e cuidada, também quando a doença se torna incapacitante e surgem necessidades de assistência integrada e de elevada qualidade. E é inegável que a pandemia reforçou em todos nós a consciência de que a “riqueza dos anos” é um tesouro a valorizar e proteger».  Citando São João Paulo II, o documento liga o valor da velhice ao sentido do destino último da existência humana: «É urgente recuperar a perspetiva correta de consideração da vida no seu conjunto. E a perspetiva correta é a da eternidade, da qual a vida é uma preparação significativa em cada uma das suas fases. Também a velhice tem um seu papel a desempenhar neste processo de progressiva maturação do ser humano a caminho da eternidade. Se a vida é uma peregrinação em direção ao mistério de Deus, a velhice é o tempo em que mais naturalmente se olha para o limiar deste mistério. O homem que envelhece não se aproxima do fim, mas do mistério da eternidade, para o compreender, precisa de se aproximar de Deus e de viver em relação com Ele.». Compreende-se, assim, melhor porque é que nunca deve dizer-se, de si ou de outros: «Já não estou cá a fazer nada…»

                 Este documento propõe um novo modelo de cuidado e assistência dos idosos mais frágeis. Sem deixar de reconhecer que tal nem sempre é possível, afirma «o dever de criar as melhores condições para que os idosos possam viver esta particular fase da vida, na medida do possível, no ambiente que lhe é familiar, com as amizades habituais. Quem não gostaria de continuar a viver na sua casa, rodeado de afetos das pessoas que lhe são queridas, também quando se torna mais frágil? A família, a casa, o seu ambiente, representam a escolha mais natural para quem quer que seja.»

             Outra importante lição da pandemia é o da nossa natural interdependência («Estamos todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho» - as frases do Papa Francisco que tanto eco tiveram). Uma lição que vem de encontro à mensagem da Fratelli tutti e se torna particularmente oportuna não apenas no que se refere às questões sanitárias, mas também à recuperação da crise económica e social gerada pela pandemia.   

             Diz o Papa nesta encíclica (n. 32): «É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos.» Mas diz também (n. 35): «Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, “mestra da vida”. Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam “os outros”, mas apenas um “nós”. (…) Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.».

             A parábola do Bom Samaritano serve de modelo no modo de enfrentar a crise económica e social que atravessamos. A este respeito, afirma a Fratelli tutti (n. 53):

             «É possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo, com o mesmo cuidado que o viandante da Samaria teve por cada chaga do ferido. Procuremos os outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete, sem temer a dor nem a impotência, porque naquela está todo o bem que Deus semeou no coração do ser humano. As dificuldades que parecem enormes são a oportunidade para crescer, e não a desculpa para a tristeza inerte que favorece a sujeição. Mas não o façamos sozinhos, individualmente. O samaritano procurou um estalajadeiro que pudesse cuidar daquele homem, como nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num “nós” mais forte do que a soma de pequenas individualidades; lembremo-nos de que “o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas”»

             A missão do Bom Samaritano é a de cada um de nós, e também a das instituições sociais e políticas (que podem desempenhar o papel do estalajadeiro). Será adequado evocar o que a encíclica afirma a respeito da dimensão social e política da caridade (n. 186): «É caridade acompanhar uma pessoa que sofre, mas é caridade também tudo o que se realiza – mesmo sem ter contacto direto com essa pessoa – para modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento. Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política.»

Cada vez se evidencia mais como a crise económica devida à pandemia da Covid-19 não atinge todos por igual. Para além do grande incremento das colossais fortunas dos gigantes das tecnologias de comunicação, alguns factos mais próximos de nós devem ser salientados a este respeito.

Uma explicação para que os impostos sobre os rendimentos do trabalho não tenham caído como seria de esperar será a de que as quebras desses rendimentos atingiram sobretudo os mais pobres, os que não pagam impostos ou que pagam menos. E entre estes conta-se quem não pode recorrer ao teletrabalho. Entre trabalhadores do setor público, sem quaisquer quebras de rendimentos, e muitos do setor privado ou pequenos empresários, a diferença também é notória. Li há tempos uma peça jornalística com conselhos sobre a aplicação de poupanças que para alguns (sem quebras de rendimentos e com despesas reduzidas, como as de transportes) trouxe a pandemia. Entretanto, os sucessivos confinamentos (depois de se ter afirmado que o país não aguentaria a repetição do primeiro) atingiram invariavelmente as mesmas categorias profissionais.

Diante desta situação, parece-me de salientar, por um lado, o que afirmaram os bispos portugueses na sua reflexão intitulada Recomeçar e Reconstruir, sobre a sociedade a reconstruir depois desta pandemia. Salienta tal documento que a amplitude da crise originada pela pandemia tem feito redescobrir a importância do papel do Estado no que diz respeito aos apoios sociais e ao relançamento da economia, algo que condiz com a doutrina social da Igreja se for também observado o princípio da subsidiariedade (isto é, que a iniciativa do Estado não absorva, mas complete, supletivamente, as iniciativas da sociedade civil). Cabe, pois, ao Estado fazer do combate à pobreza e à desigualdade uma prioridade que supera muitos outros dos seus objetivos. Tal prioridade não significa um aumento da dívida pública, que sempre terá de ser paga pelos vindouros, mas um critério decisivo de seleção de despesas e receitas.

Mas salienta também esse documento, na linha desse princípio da subsidiariedade: «… convirá não cair na ilusão de que do Estado se pode esperar a superação da crise sem o contributo da iniciativa e criatividade da sociedade civil, quer no plano dos apoios sociais, quer do relançamento da economia. Seria uma forma de desresponsabilização da sociedade civil esperar passivamente pela intervenção do Estado em todos os domínios.»

Quanto aos apoios sociais imediatos, afirma ainda esse documento que é exigido um esforço acrescido da sociedade civil que não tem paralelo na nossa história recente: «Não bastam ajudas esporádicas e ocasionais, movidas por emoções momentâneas. São necessárias ajudas, em dinheiro, bens ou trabalho voluntário, que sejam contínuas, consistentes e impliquem até renúncias significativas.»

Vem-me à mente, a este propósito, uma iniciativa que surgiu na minha paróquia e que se está a estender a outras paróquias vizinhas: várias pessoas (são já mais de duas centenas) confecionam regularmente refeições para distribuir por famílias que delas necessitam e que são selecionadas pela junta de freguesia com salvaguarda da privacidade destas. Tenho acompanhado a iniciativa e é comovente ver como cada cozinheira/o confeciona tais refeições com o mesmo esmero e a mesma qualidade com que o faz para a sua própria família.

Essas situações de carência não param de aumentar e não se prevê que diminuam nos tempos mais próximos. Mas é óbvio que não podemos aceitar que esta situação se prolongue indefinidamente. É que. como afirma o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti, ajudas como esta ou subsídios estatais devem ser sempre «um remédio provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma vida digna através do trabalho, pois o «trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável do mundo e, finalmente, viver como povo» (n. 162).

Na encíclica, a missão do empresário é enaltecida na medida em que cria oportunidades de trabalho parra outros (e assim contribui para o destino universal dos bens), «um modo de desenvolver as capacidades que Deus nos deu e as potencialidades de que encheu o universo» (n. 123).

É este objetivo, de combate à pobreza e à desigualdade através da manutenção e criação de empregos (que sejam bem remunerados, pois, como confirmou um estudo recente, o emprego com baixos salários não elimina a pobreza), que, nesta fase de pós-pandemia, deverá mobilizar a todos, Estado e sociedade civil, trabalhadores e empresários, num esforço acrescido de unidade e conjugação de esforços que, também ele, deverá ser sem paralelo na história recente.

De entre outros temas abordados na encíclica Fratelli tutti, eu destacaria os seguintes:

 

A propósito do princípio do destino universal dos bens, este é reafirmado na encíclica também com grande ênfase, como direito natural, primordial e prioritário, «primeiro princípio de toda a ordem ético-social». Outros direitos, incluindo o de propriedade privada, estão-lhe subordinados, devem facilitar a sua realização, não impedi-la (n. 120).

A respeito do funcionamento da economia, são criticadas as posições que do mercado esperam a solução de todos os problemas: um pensamento «pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer problema que surja» (n. 168).

Quanto à dívida dos países mais pobres, afirma a encíclica: «Embora se mantenha o princípio de que toda a dívida legitimamente contraída deve ser paga, a maneira de cumprir este dever que muitos países pobres têm para com países ricos não deve comprometer a sua subsistência e crescimento» (n. 126).

Severa é a crítica à especulação financeira que condiciona o preço dos alimentos, tratados como qualquer mercadoria, provocando desse modo a fome de muitas pessoas, fome que é «criminosa» (n. 189).

Um relevo especial é dado na encíclica a todas as formas de diálogo. Muitas vezes, porém, confunde-se o diálogo com monólogos paralelos. «O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos» (n. 203). Na verdade: «De todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo» (n. 215).

Isto não significa aderir ao relativismo, como se a verdade estivesse sujeita a consensos ou negociações. Mesmo que se deva reconhecê-la, ou as suas implicações concretas, através do diálogo, há «verdades que não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão» (n. 208). A ética e a política não podem assemelhar-se à física, como se não existissem o bem e o mal em si mesmos, mas apenas cálculos de vantagens e desvantagens (n. 210). Se não fosse assim, se não houvesse verdades transcendentes, os direitos humanos poderiam ser negados «pelos poderosos de turno depois de terem obtido o “consenso” de uma população adormecida e amedrontada» (n. 209).   

Muito distante do verdadeiro diálogo, está um uso frequente de redes sociais marcado por uma «agressividade despudorada», onde se recorre a expressões e posturas que outrora envergonhariam qualquer pessoa (n. 44). Os meios digitais também favorecem o encontro entre pessoas com as mesmas ideias e dificultam o confronto com quem tem ideias diferentes (n. 45).

À arte do diálogo está também associada a missão da política, caracterizada como «sublime vocação, uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum». Salienta-se, assim, como já vimos, a dimensão social e política da caridade (n. 186). A caridade não se confunde com o sentimentalismo subjetivo, supõe um compromisso com a verdade (n. 184). E aspira à eficácia, não se fica pelas boas intenções (n. 185).

Um destaque particular é dado na encíclica à reconciliação, ao perdão (este também na sua relação com a justiça) e à paz.

Para quem, como eu, lida quotidianamente com a justiça criminal, o tema da relação entre a justiça e o perdão assume uma grande relevância. Tenho refletido e escrito sobre ele à luz do Evangelho e da doutrina social da Igreja.

Muitas vezes tenho citado, a este respeito, uma notável mensagem de São João Paulo II, a sua mensagem para Dia Mundial da Paz de 1 de janeiro de 2002 Não há Paz sem Justiça, não há Justiça sem Perdão. Nela se afirma:

«Muitas vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada, mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)».

Por outro lado, o perdão não tem uma dimensão puramente individual, moral ou religiosa, tem também uma dimensão social: «Como ato humano, o perdão é, antes de mais, uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus semelhantes. Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade mais justa e solidária.» (n.9).

O que nos diz agora, a este respeito, a Fratelli tutti?

Diz-nos que «a verdade, a misericórdia e justiça são essenciais para construir a paz e cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (n. 227).

             Há que evitar quer o fatalismo e a inércia perante a injustiça, quer a violência e a intolerância (n. 237)

Quando Jesus afirma que não veio «trazer a paz, mas a espada» (Mt 10. 34-36), não convida a provocar conflitos, mas a suportar o conflito inevitável, para que o respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz familiar ou social (n. 240). A verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes (n. 244). Repetindo a máxima que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma que «a unidade é superior ao conflito», o que não significa ignorar o conflito, mas resolvê-lo «num plano superior que preserva as preciosas potencialidades das polaridades em contraste» (n. 245).

             Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as (n. 241).

             Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem da injustiça do esquecimento» (n. 252). A esta luz deve ser encarado o que depois se afirma a propósito da pena de morte e da pena de prisão perpétua.

              De resto, a vingança «nunca sacia verdadeiramente a insatisfação da vítima» (n. 251). 

O perdão não é algo que possa ser imposto às vítimas. Na esfera pessoal, alguém pode renunciar a exigir um castigo, mesmo que a sociedade e a justiça o busquem legitimamente. Mas ninguém pode arrogar-se o direito de perdoar em nome dos outros. «É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento» (n. 246).         

             Mas o perdão é sempre possível. «Mesmo que haja algo que jamais pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar» (n. 250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).

             A respeito da guerra, é forte na encíclica a expressão do seu repúdio como meio de resolução de conflitos. Relembra-se as condições muito estritas da sua legitimidade como último recurso de defesa, tal como vêm enunciados no Catecismo da Igreja Católica. Alerta para a tendência que se verifica sempre de tentar encontrar justificações para qualquer guerra, e também de alargar injustificadamente o âmbito da legítima defesa (exemplificando com a noção de “guerra preventiva”[4]). As teses mais antigas sobre a “guerra justa”, que não a limitam a situações de estrita defesa, estão hoje superadas, perante os danos que qualquer guerra hoje (mais do que no passado) acarreta, sempre superiores aos que com ela se pretende evitar, condição que sempre foi colocada para a sua legitimidade (n. 258).  

             Afirma também a encíclica que a verdadeira paz não pode assentar na dissuasão, no medo e nas ameaças de destruição mútua, que só criam uma falsa segurança e a desconfiança mútua. Por isso, na linha do que já de outras vezes afirmou, o Papa apela à eliminação total da simples posse de armas nucleares. Essa eliminação é não só um desafio, mas «um imperativo moral e humanitário». Exige uma resposta «coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca» (n. 262).

             Reafirma também a encíclica a oposição à pena de morte, qualificada como «inadmissível» (n. 263). Ao contrário do que com frequência se salienta no sentido da descontinuidade do magistério do Papa Francisco neste campo com a doutrina anterior, aqui é salientada a continuidade com o magistério de São João Paulo II (que também inovou e de que não será possível recuar) e são também citadas manifestações de oposição à pena de morte desde os primeiros tempos da Igreja (n.s 263 e 265).

             O cerne da oposição à pena de morte reside, porém, na distinção entre o crime e a dignidade pessoal do criminoso, que nunca se perde, nem num autor do crime mais grave, nem em qualquer outra pessoa. Citando São João Paulo II, afirma Francisco: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus se constitui seu garante». E continua: «A rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este Planeta, apesar do que nos possa separar» (n. 269).

             Também a pena de prisão perpétua é condenada como «pena de morte escondida» (n. 268). Noutras ocasiões, o Papa Francisco já havia afirmado que esta pena «mata a esperança».

              Ao longo de toda a encíclica, são frequentes as referências ao Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado pelo Papa Francisco e pela máxima autoridade do Islão sunita, o Grande Imã da universidade Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019. O Papa afirma que foi especialmente estimulado por esse documento e que nesta encíclica aprofunda e desenvolve muitos dos temas nele abordados (n. 5). Os apelos desse documento são reproduzidos no final da encíclica (n. 285).

             Assim, a fraternidade universal é associada ao diálogo e amizade entre fiéis de diferentes religiões. Reafirma-se o que nesse documento se diz a respeito da rejeição da violência e do terrorismo: «A violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações» (n. 282). E, também, citando diretamente a Declaração de Abu Dhabi: a violência em nome da religião é «fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – em algumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens» (285).

             Foi isto mesmo que afirmaram Ahmad Al-Tayeb e outros dirigentes muçulmanos que condenaram com veemência o atentado terrorista na Catedral de Nice.

A crença em Deus não pode conduzir à violência. É assim, desde logo, porque «aquele que não ama não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor» - 1 Jo 4.8 (n. 283).

             Salienta-se o valor da liberdade religiosa, que deve ser garantida a todos, onde os cristãos são minoria e onde são maioria (n. 279).

             A declaração de Abu Dhabi e importância do diálogo inter-religioso na promoção da paz e da fraternidade universal veio em grande evidência na recente visita do Papa Francisco ao Iraque.

             Eis, assim, muitos dos aspetos abordados nesta encíclica. Ainda muitos mais poderiam ser salientados. Para os católicos, trata-se de um documento a estudar com afinco e a viver com coerência. Mas muitas outras pessoas, cristãos de outras denominações, fiéis de outras religiões e todos os que aderem a ideais de fraternidade, podem dela colher, de uma ou de outra forma, inspiração.

                                                      Vila Real (Cascais – à distância), 28 de maio de 2021

                                                                                               Pedro Vaz Patto

                                                           Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz



[1] In Città Nuova, n.º 3/2021, pg. 71

[2] Vem à mente, a este respeito, a “opção preferencial pelos ricos” que se reflete no tratamento dos vistos gold, por exemplo.        

[4] Veja-se o que sucedeu na guerra do Iraque, cuja legitimidade foi negada por São João Paulo II, o qual procurou de todas as formas evitá-la.

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