Nota da Comissão Nacional Justiça e Paz
Recomeçar a partir das Cinzas
Esta gente cujo
rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes
tosco
Ora me lembra
escravos
Ora me lembra reis
(...)
O fragmento do poema de Sophia de Mello Breyner descreve de
algum modo aquilo que a comunicação social evidenciou à exaustão ao longo
destes dias: a coragem, sentido de colaboração e solidariedade, resiliência,
dor contida e digna das populações afetadas pelos mais recentes fogos. Ouvimos
dizer, em voz permeada pelas lágrimas: “Nós estamos aqui e não vamos baixar os
braços”. A devastação é trágica. As imagens aéreas lembram um país em guerra,
um país bombardeado.
Em junho passado a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP)
divulgou uma Nota relativa aos incêndios do verão. Essa Nota, assumida
colectivamente com as Comissões Diocesanas Justiça e Paz e a Comissão Justiça e
Paz dos Institutos Religiosos, expressava uma profunda solidariedade com as
vítimas, na sua maioria pertencentes às populações rurais mais frágeis e
isoladas, reconhecendo simultaneamente o trabalho e dedicação dos bombeiros.
Sublinhando a gravidade das alterações climáticas a CNJP, citando o Papa
Francisco, alertava os responsáveis políticos e a sociedade civil para que
fosse desenhado um novo ordenamento do território orientado por critérios do
bem comum.
Já no passado mês de abril, ainda não tinham começado os
incêndios, a Conferência Episcopal emitiu uma Nota Pastoral (“Cuidar da casa
comum- prevenir e evitar os incêndios”) alertando para o que poderia novamente
suceder quando se aproximasse o verão. Mais recentemente, em setembro, a
Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana emitiu uma Nota no
Dia Mundial da Oração pelo Cuidado da Criação e, na sequência de novos
incêndios, convidava «todas as comunidades cristãs a dar graças a Deus pela
Criação e a pedir ao Criador a conversão do coração daqueles que se consideram
donos e senhores do mundo em que vivemos».
A CNJP não quer repetir o que foi dito anteriormente. Mas
sente-se compelida a fazê-lo, insistindo e eventualmente apontando novas
dimensões desta calamidade pública, começando pelo exemplo de solidariedade,
organização e cooperação local que permitiu que a tragédia não fosse ainda mais
grave. Os mais afastados dos poderes centrais demonstraram uma forma de ser e
de viver a tragédia digna de “reis” ou mesmo de “heróis”. Uma grandiosa lição
para quem estabelece linhas orientadoras e toma decisões que afectam todos e
cada um.
Ao longo destas semanas foram produzidos Relatórios, aliás
de grande qualidade, por diferentes comissões ou instituições. O tempo foi-se
desdobrando em comentários e comentadores políticos “ditando de sua justiça” e
fazendo as suas leituras dos acontecimentos. Mas será que foi criado um amplo
consenso para uma ação concertada? É óbvio que “o Estado falhou” mas será que o
Estado não abrange também todos nós, mulheres e homens “de boa vontade”, bem
como a sociedade civil e suas organizações numa clara dimensão coletiva?
A CNJP considera que:
· É urgente repensarem-se – isto é, para já... para hoje!!!
- todas as estruturas de suporte a calamidades como esta ou outras, implicando
o Estado e os responsáveis políticos a nível central, regional e local, numa
estratégia de concertação;
· É urgente passarmos de um Estado centralista e distante
dos cidadãos a estruturas integradas a nível nacional mas também local que
intervenham concertadamente e que prestem contas e sejam submetidas a uma
avaliação sistemática pelos cidadãos;
· É urgente identificarem-se criminosos – indivíduos ou
grupos organizados – fazendo-os prestar contas à justiça para que não fiquem
impunes mas evitando, no entanto, “discursos de ódio”;
· É urgente reinventar uma cidadania proactiva, solidária,
eficaz, que reforce a sociedade civil, afronte e denuncie burocracias e
inanições irresponsáveis, reconhecendo a importância do voluntariado social a
todos os níveis e em todos os lugares.
Finalmente é também urgente que criemos um novo ethos, um pacto nacional, a nível
político/público/privado/coletivo ou mesmo individual, de modo a passarmos da lamúria
e auto comiseração para uma ação concertada ao jeito dos “reis” mencionados anteriormente.
A CNJP quer novamente afirmar esta Urgência. Será que, tal
como no poema de Sophia, podemos pedir a cada um/a de nós e aos políticos mas
também às organizações a que pertencemos e em que estamos implicados, que
tornemos realidade o convite que nos deixa a poeta?
(...) E recomeço a
busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo
justo.
Lisboa, 24 de outubro de 2017
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