Passaram dez anos desde
o referendo que conduziu à liberalização do aborto em Portugal. De um modo
geral, os comentários a propósito deste aniversário deram a entender que a
questão estará encerrada. Quiz-se salientar os benefícios da redução do aborto
clandestino no plano da saúde pública e a redução progressiva do número de
abortos Houve até quem dissesse que a nova lei contribuiu para a defesa da vida
e o combate ao aborto (!). De entre os que com todo o empenho se bateram, há
dez anos, pelo “não”, poderá haver quem se questione se terá valido a pena, se
essa não será, então e agora, uma causa perdida. É verdade que algumas dessas
pessoas não voltaram a falar no assunto. Outras continuam a falar com a mesma
determinação que tinham há dez anos, mas talvez se sintam cada vez mais isoladas.
Os mais satisfeitos serão certamente os que, desde essa altura, longe das
atenções da comunicação social e sem que quase ninguém o saiba, se vão
dedicando ao apoio às mulheres grávida em dificuldade e assim vão salvando
muitas vidas.
A análise das estatísticas deve suscitar, porém, outro
tipo de conclusões. A redução do número de abortos reflete, em grande medida, a
redução do número de mulheres em idade fértil e do número de nascimentos. Não
podem comparar-se estes números com os das supostas estimativas de práticas de
aborto clandestino antes da liberalização, pois estas nunca tiveram bases
rigorosas e, com frequência, pelo seu exagero, serviam de puro instrumento de propaganda (chegou
a falar-se em mais de cem mil abortos por ano em Portugal). A redução das complicações clínicas
associadas ao aborto clandestino vem sendo acompanhada pelo aumento de
complicações associadas ao aborto legal
(também houve mortes de mulheres devidas ao aborto legal, de que ninguém
falou, ao contrário do que se verificava quando essas mortes ocorriam em
abortos clandestinos). Tem crescido continuamente (chegou aos trinta por cento
do número total de abortos) o número de abortos que representam uma repetição por
parte da mesma mulher.
A lógica que subjaz a qualquer política legislativa é a
de que não se limita ou reduz uma qualquer prática quando esta é legalizada e
facilitada ao máximo, como sucede atualmente com a prática do aborto entre nós.
Se o número de abortos se reduz, não será certamente por causa da lei vigente, mas apesar
da lei vigente. Esta levou a que em dez anos, com a colaboração ativa do Estado
e dos serviços de saúde, se tenham perdido cento e setenta mil vidas. E nenhuma
dessas perdas era inevitável. Não pode aceitar-se que se olhe para esses
números (mesmo que sejam inferiores à média europeia) com satisfação (porque
esse número «estabilizou» ou «está contido»...). Ninguém aceitaria que estivessemos
satisfeitos com números dessa grandeza quando estão em causa outras causas de
morte (acidentes de trabalho, de viação, violência doméstica, etc).
E foi para evitar este panorama que muitos se bateram há
dez anos. Pela minha parte, não tenho dúvidas de que valeu a pena e desse
empenho nunca me arrependerei.
Também não devemos pensar que se trata de uma causa
perdida e encerrada. Ela exige, sim, mais do que um combate no plano político e
legislativo, exige uma mudança cultural que, na perspetiva cristã, passa por
uma “nova evangelização”. Até que vejamos no nascituro o “mais pobre os pobres”
de que falava Teresa de Calcutá, ou “o mais pequeno dos meus irmãos” de que
fala o Evangelho. Cuja vida merece todo o nosso cuidado e o nosso empenho,
apesar da sua extrema vulnerabilidade, que chega ao ponto de nem sequer ter a
capacidade de nos comover com a imagem do seu sofrimento.
Pedro Vaz Patto
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