JUSTIÇA
E MISERICÓRDIA
O que terá a dizer um juiz, que há
cerca de vinte e cinco anos exerce funções na área penal, sobre justiça e
misericórdia?
Sobre a relação entre justiça e
misericórdia, justiça e caridade,
justiça e perdão, quem, como eu, lida
com a realidade judiciária, ou quem se dedique à política ou a causas de
justiça social, encontra no ensinamento dos últimos Papas palavras
iluminadoras.
Disse São João Paulo II na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2002[1]
(n. 6): «… o perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça (…) porque
não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada;
mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da
ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das
hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram
nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.»
E disse o Papa emérito Bento XVI na encíclica Caritas in veritate (n. 6): «Por um
lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos
direitos dos indivíduos e dos povos. (…) Por outro, a caridade supera a justiça
e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A “cidade do homem” não se move
apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por
relações de gratuidade, misericórdia e comunhão.»
A misericórdia não contraria a justiça. Esta é um seu pressuposto, uma
sua medida mínima, mas ela ultrapassa-a, levando-a à plenitude.
É também o que diz o Papa Francisco na bula de
proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Misericordiae Vultus:
«Neste contexto, não será inútil recordar a
relação entre justiça e misericórdia.
Não são dois aspetos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única
realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude
do amor. A justiça é um conceito fundamental para a sociedade civil,
normalmente quando se faz referimento a uma ordem jurídica através da qual se
aplica a lei. Por justiça entende-se também que a cada um deve ser dado o que
lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça divina, e a
Deus como juiz. (…)
«A misericórdia não é contrária à justiça,
mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma
nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar. A experiência do
profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da justiça na linha da
misericórdia.(…)
«Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser
Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por
si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para
ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o
perdão, passa além da justiça. (…)»
Diz o Papa Francisco no livro-entrevista O nome de Deus é misericórdia:
«(…) A justiça é mais justa com a misericórdia,
realiza-se realmente a si mesma. Isto não significa ser indulgente, no sentido
de abrir as portas das prisões a quem está manchado de crimes graves. Significa
que devemos ajudar a levantar aqueles que caíram. É difícil pôr em prática,
porque por vezes preferimos fechar alguém numa prisão durante uma vida inteira,
em vez de tentar recuperá-lo, ajudando-o a reinserir-se na sociedade.»[2]
E disse também o Papa Francisco na audiência
geral do passado dia 3 de fevereiro:
«A Bíblia apresenta-nos Deus como a misericórdia infinita e a
justiça perfeita. Não há contradição, pois é a misericórdia que leva ao
cumprimento da verdadeira justiça. De fato, existe um tipo de justiça, a
retributiva, que manda dar a cada um o que lhe é devido, que leva a condenar
quem comete um delito. Contudo, não é uma justiça perfeita, pois não vence
realmente o mal, apenas contém o seu avanço. Na Bíblia, aprendemos outro modo de
fazer justiça. Não através da punição, mas do perdão que apela à consciência,
para conduzir à conversão. O ofendido ama o culpado e quer salvá-lo. É um
caminho difícil. Mas só quando o culpado reconhece o mal e muda de vida é que a
justiça triunfa. E é assim que Deus, com o seu coração de Pai, age conosco: a
sua justiça é o seu perdão. Em Jesus, a misericórdia se fez carne e a
verdadeira justiça alcançou a plenitude: fomos perdoados, chamamos a Deus de
Pai e, por isso, devemos perdoar àqueles nos ofendem como Ele nos perdoou.»
A misericórdia supõe, pois, a justiça. Mas vai
para além dela. Em que é que se distingue o exercício “frio “ da justiça do
exercício da justiça permeado, articulado, completado, pela misericórdia?
Posso dar apenas o meu testemunho. E algumas
breves reflexões que são fruto da minha experiência. Uma experiência que, com
frequência, leva a condenações em penas e em penas de prisão.
Nessas ocasiões, considero que o exercício da justiça não pode
prescindir de uma sincera e “vivida” reflexão sobre o que representa a
condenação e a privação da liberdade. É bom que o juiz, mentalmente e de algum
modo, se identifique com o condenado, se “ponha na sua pele”, tente fazer seu o
sofrimento deste, sofrimento que está necessariamente associado a qualquer pena.
Trata-se de seguir a lição de Chiara Lubich: praticar a “arte de amar” que nos
leva a fazermo-nos “um com o outro”[3]. E
isto não para se envolver emotivamente de forma intensa (não teria, de resto,
resistência psicológica para isso) ou deixar que um sentimento de compaixão o
impeça de cumprir o seu dever de condenar (e até condenar com severidade,
quando for caso disso), mas para que o poder não seja exercido “de ânimo leve”,
com ligeireza, de forma superficial ou rotineira (aquele não é “mais um
processo” entre tantos outros, nem “mais um recluso” entre tantos outros).
Também pode ser um
sinal algo patológico a satisfação pela condenação e a frustração pela
absolvição. Há quem fale, a este respeito no “perverso prazer de condenar”. A
condenação é uma necessidade e uma obrigação, não um motivo de satisfação ou
deleite[4].
Mas esta não é a única
faceta da realidade, nem o único valor em jogo. O equilíbrio e a sensatez que
se exigem sempre dos juízes são aqui postos à prova de modo particular. Importa
ter presentes todas as facetas da realidade e todos os valores em jogo. Do
mesmo modo que o juiz não pode deixar de se identificar com o condenado, também
não pode deixar de se identificar com as vítimas, reais ou potenciais (quem foi
ou poderá ser vítima daquele arguido, ou de outros), de fazer seus as angústias
e sofrimentos destes. E sem que, na ponderação de todos esses interesses e
valores, se confundam os pesos relativos dos que dizem respeito às vítimas e
dos que dizem respeito aos culpados (precisamente porque uns são vítimas e
outros são culpados).
Exercer a justiça, e o poder
de punir, com misericórdia tem outro alcance que me parece da maior relevância
e que se liga à atitude (interior, mas com inevitáveis reflexos exteriores) do
juiz para com os condenados. A este respeito, várias vezes me vem à mente a
advertência evangélica: «Não julgueis para não serdes julgados, pois, conforme
o juízo com que julgardes, assim sereis julgados, e, com a medida com que
medirdes, assim sereis medidos» (Mt,
7, 1-5). Não me parece que esta advertência seja relativa apenas às relações
interindividuais, e não também a quem julga por “dever de ofício”. Mas qual o
sentido dessa advertência para o exercício da justiça?
Recorda-nos, antes de
mais, a necessária distinção entre a apreciação jurídica dos factos e a
apreciação moral da pessoa. E também as insuficiências do juízo humano, que não
penetra no íntimo da consciência, onde só Deus penetra. A culpa diante de Deus
pode ser muito diferente da culpa diante dos homens. Também por isso, o juízo
humano nunca poderá ofuscar o respeito devido à pessoa do criminoso, cuja
dignidade está para além do ato que cometeu, o qual, para além do mais, surge
num contexto subjetivo que de algum modo nos escapa. E impõe também que se
afaste a atitude psicológica que cria uma barreira psicológica entre quem julga
e se pretende “superior” e quem é julgado e é visto como “inferior”.
Afirma, a este
respeito, o Papa Francisco na sua mensagem para o 50º Dia Mundial das
Comunicações Sociais:
«(…) Seja o estilo da nossa comunicação capaz de superar a lógica que
separa nitidamente os pecadores dos justos. Podemos e devemos julgar situações
de pecado – violência, corrupção, exploração, etc. –, mas não podemos julgar as
pessoas, porque só Deus pode ler profundamente no coração delas. É nosso dever
admoestar quem erra, denunciando a maldade e a injustiça de certos
comportamentos, a fim de libertar as vítimas e levantar quem caiu. O Evangelho
de João lembra-nos que “a verdade [nos] tornará livres” (Jo 8, 32). Em última análise, esta
verdade é o próprio Cristo, cuja misericórdia repassada de mansidão constitui a
medida do nosso modo de anunciar a verdade e condenar a injustiça. É nosso
dever principal afirmar a verdade com amor (cf. Ef4, 15). Só palavras
pronunciadas com amor e acompanhadas por mansidão e misericórdia tocam os
nossos corações de pecadores. Palavras e gestos duros ou moralistas correm o
risco de alienar ainda mais aqueles que queríamos levar à conversão e à
liberdade, reforçando o seu sentido de negação e defesa.»
Assim, cada palavra,
oral ou escrita, e cada gesto dirigidos ao presumível autor de qualquer crime,
ou a quem tenha sido definitivamente condenado por qualquer crime, por muito grave
que este crime seja, por muita repugnância que este cause, hão de ser marcados
pela cortesia e pela caridade devidas a quem não perdeu, por mais indigno que
seja o ato que praticou, a dignidade de filho de Deus[5].
Exercer a justiça e o
poder de punir com misericórdia significa nunca deixar de acreditar na
possibilidade de mudança de quem cometeu um, vários ou muitos crimes. Significa
afastar sempre a tentação de considerar que há delinquentes “irrecuperáveis”. O
objetivo da pena há de ser sempre, para além do castigo, da retribuição, o de
encontrar uma qualquer forma de reconciliação entre o agente do crime, a vítima
e a sociedade.
Porque falta esta dimensão de reconciliação na pena de morte e na pena
de prisão perpétua, o Papa Francisco tem manifestado com vigor a sua oposição a
estas penas. Numa carta ao presidente da Comissão Internacional contra a Pena de
Morte, de 20 de março de 2015, afirmou que a pena de morte não permite a
remissão do condenado, é expressão de vingança e não de justiça, e contraria o
amor aos inimigos e a misericórdia sempre associada à justiça divina, que deve
ser modelo da justiça humana. E o mesmo se pode dizer de penas que, pela sua
duração, privem o condenado de projetar um futuro em liberdade, e assim o
privem da esperança. Uma sociedade que não perdoa aos condenados que cumprem ou
já cumpriram as suas penas – disse o Papa Francisco em Nápoles a 21 de março de
2015 - não é uma sociedade cristã, é uma sociedade pagã.
As respostas que têm sido
dadas à questão dos fins das penas numa perspetiva cristã nem sempre são
coincidentes. É fundamentalmente em redor das relações entre o retribucionismo
e a ética cristã que se distinguem essas respostas. As teorias retribucionistas
assentam no pressuposto do relevo metajurídico do crime como violação de uma
norma de valor absoluto e não contingente. A pena é concebida como fim em si
mesmo, como castigo, compensação ou reparação do mal provocado pelo crime. O
mal que representa a pena recompõe a ordem perturbada pelo mal produzido pelo
crime. A pena tem, pois, uma justificação ética, independentemente de
considerações de tipo utilitarista.
Para uma primeira
corrente, o retribucionismo é uma exigência da lei natural e da ética cristã. A
pena é, antes de tudo, uma exigência ética de reação ao mal. A ordem violada
pelo ato culposo exige o restabelecimento do equilíbrio perturbado. Esta reação
não se confunde com a vingança, pois a pena retributiva é expressão de justiça,
a qual pressupõe racionalidade, proporção e equilíbrio, enquanto a vingança é
expressão puramente passional.
Numa perspetiva
teológica, estes autores invocam a ideia de justiça divina (que não é anulada
pela misericórdia divina) como justiça retributiva: cada um receberá de acordo
com o seu comportamento (Is 59,18; Mt 16,27). E associa-se o carácter
expiatório da sanção penal ao valor moral e cristão da penitência.
Independentemente das
justificações teológicas, invocam estes autores os pressupostos metafísicos e
personalistas do retribucionismo, em oposição ao positivismo naturalista de que
seriam expressão teorias alternativas. Só o princípio retribucionista exigiria
a culpa como pressuposto e medida da pena. Em coerência com os seus princípios,
teorias baseadas na defesa social (tanto as que apelam à intimidação como as
que apelam à reinserção social do delinquente) sacrificam inevitavelmente esta
exigência e só esta exigência impede que a pessoa seja instrumentalizada como
meio ao serviço de fins de prevenção e utilidade social.
De uma perspetiva
radicalmente diferente, partem os autores que recusam a compatibilidade entre o
retribucionismo e a doutrina cristã. Estes veem na reinserção social ou na
reeducação do delinquente os fins primordiais da pena e a tradução concreta dos
ideais cristãos de caridade, solidariedade, reconciliação e perdão.
Para esta corrente, o
retribucionismo não pode libertar-se completamente da ideia de vingança, pois
supõe a resposta ao mal com outro mal, ao conflito com o conflito, perpetuando
o seu ciclo vicioso. Não corresponde à visão bíblica da justiça divina como
apelo à reconciliação e à pacificação. E “conversão” e “reconciliação” são
expressões bíblicas que se podem traduzir, no âmbito do direito penal moderno,
por “reintegração”, “reinserção social” ou “ressocialização”.
Como resposta à tese
segundo a qual somente o retribucionismo garante a proteção da dignidade da
pessoa humana, afirma-se, por outro lado, que o objetivo da reinserção social
não deve ser concebido como um conjunto de estratégias de condicionamento e de
imposição coativa de valores, nem sequer como uma terapia, mas como uma oferta
de possibilidades que permitam a livre adesão do condenado aos valores
fundamentais da convivência social. Por outro lado, afirma-se que só o objetivo
de reinserção social permite a tutela efetiva, não puramente formal e abstrata,
da dignidade da pessoa humana, quer porque acentua a necessidade de políticas
sociais que combatam os fatores criminógenos que condicionam efetivamente a
liberdade, quer porque oferece ao condenado a possibilidade de rápida
integração na vida civil.
Na área de pensamento
cristão de tradição protestante anglo-saxónica, esta questão também tem obtido
respostas que acentuam a superação do retribucionismo em prol da chamada
“justiça restaurativa” (restorative
justice).
Um dos principais
expoentes desta proposta de novo paradigma de justiça penal, Howard Zehr[6],
encontra uma das suas raízes no modelo bíblico da justiça de Deus no âmbito da
Aliança com o seu Povo (covenant justice),
que não se limita ao castigo, mas busca continuamente a reconciliação e a
plenitude da paz e harmonia (este o sentido do shalom hebraico) modelo que se distingue do do código babilónico de
Hammurabi, e dos sistemas jurídicos grego, romano e moderno.
O modelo da “justiça
restaurativa” encara o crime, já não tanto como violação da Lei, na sua
abstração, mas sobretudo como uma ferida nas pessoas e relações concretas. Essa
ferida deve ser curada através da reparação do mal causado à vítima (mais do
que através da simples punição) e da “restauração” dessas relações. Parte de
uma visão da sociedade como teia de relações: todos os seus membros estão
ligados entre si e são afetados quando alguma dessas relações se quebra; cada
um desses membros é único e válido e deve ser respeitado nesse seu valor e
nessa sua unicidade. O modelo retributivo tradicional, por um lado, esquece a
vítima concreta e as suas necessidades em nome da tutela da Lei abstrata e, por
outro lado, tende a separar o agente do crime da vítima, sempre encaradas em
posições opostas, desencorajando o conhecimento recíproco, a assunção de
responsabilidades daquele para com esta e a reconciliação entre ambos. O
sistema restaurativo, pelo contrário, propõe-se encorajar esse conhecimento
recíproco, essa assunção de responsabilidades e essa reconciliação.
Uma primeira questão
deve, porém, ser esclarecida.
Não serão as máximas
evangélicas válidas apenas, ou sobretudo, para as relações inter-pessoais, e
não para as relações políticas, para a atuação individual, não para a atuação
do Estado? Cada um pode perdoar ao seu inimigo, o Estado não (não pode
substituir-se à vítimas e as vítimas nem sempre são pessoas determinadas, ou
não só essas pessoas determinadas).
Trata-se, antes, em meu
entender de buscar uma mediação que recusa o dualismo ético e não afasta as
exigências da ética evangélica (que podemos traduzir, numa perspetiva
aconfessional, pelo ideal da fraternidade) do ordenamento jurídico e estadual,
mas as adapta aos diferentes contextos.
É claro que não podemos
transpor diretamente a mensagem bíblica a respeito das relações entre o pecador
e Deus e o sentido da justiça e da misericórdia divinas para o Direito Penal.
Pecado e crime não são sinónimos, o primeiro tem a ver com a atitude interior,
o segundo com comportamentos externos socialmente danosos. Através do sistema
penal, nunca poderemos impor a conversão interior do criminoso, mas apenas
propor ou facilitar essa conversão. A justiça humana é necessariamente
imperfeita e nunca poderá refletir fielmente a justiça divina. Mas tudo isto
não significa que, com o necessário esforço de mediação, não possamos colher da
mensagem bíblica importantes pontos de referência para o tema que nos ocupa.
A mensagem de São João
Paulo II a que acima me referi (a mensagem para Dia Mundial da Paz de 1 de
janeiro de 2002 Não há Paz sem Justiça, não há Justiça sem Perdão) parece-me oferecer, de uma forma
sintética, mas particularmente clarividente, uma síntese feliz das teses que
vimos analisando, mesmo das que se apresentam como antagónicas (as que aceitam
e as que recusam o fim retributivo das pena). Nela se aborda a questão da relação entre justiça e perdão e onde nela
se lê “perdão, poderá ler-se, também, “misericórdia”. Diz São João Paulo
II:
«Muitas vezes me detive
a reflecir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno
restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A
convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é
que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente
justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma
particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto
da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de
direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas,
como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às
limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa
maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em
profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões
entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e
mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque
não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada,
mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da
ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades,
porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações.
Para tal, justiça e perdão são essenciais» (n. 2-3).
O perdão e a justiça
não são, pois, antagónicos. O perdão (ou a misericórdia) ultrapassa e completa
as exigências da justiça, sem anular essas exigências. E fá-lo em função de uma
mais sólida e consistente harmonia social («que cura em profundidade» as
«feridas que sangram nos corações»).
Por outro lado, o
perdão (ou a misericórdia) não tem uma dimensão puramente individual, moral ou
religiosa, tem também uma dimensão social (afasta-se. pois, o dualismo ético a
que acima já me referi): «Como ato humano, o perdão é, antes de mais, uma
iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus semelhantes. Porém,
a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma
rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente não só para o
bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário
também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria
comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os
laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a
tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A
capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade mais justa e
solidária.» (n.9).
Parece-me que esta
mensagem contém, na sua concisão, uma feliz e harmoniosa conjugação de duas
perspetivas. Por um lado, afirma que o perdão não anula as exigências
retributivas da justiça (as «legítimas exigências de reparação da ordem
violada»). Por outro lado, afirma que a pura retribuição, sem o perdão, não
permite alcançar a plena e definitiva harmonia social («aquela plenitude de
justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil
e provisória cessação de hostilidades, porque consiste na cura em profundidade
das feridas que sangram nos corações» [n. 3]). O perdão supõe, assim, a
reconciliação entre o agente do crime e a sociedade, o que significa que esta
deve oferecer àquele as possibilidades da sua livre (porque só na liberdade se
respeita a dignidade da pessoa) reeducação e reinserção social.
A justiça e o perdão não
são apresentados, nesta mensagem, em termos antitéticos ou alternativos: «o
perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça» [n. 3]. Diante de
situações de violações graves do direito à vida e de outros direitos
fundamentais, a reconciliação não poderá basear-se na simples amnistia, na amnésia
coletiva e na desconsideração das vítimas. A amnistia sacrifica, para além da
justiça, a própria verdade, pois não se chega sequer a fazer luz sobre a
prática do crime, sobre o que se passou verdadeiramente. É por isso que se tem
salientado, a este respeito, o dever de verdade e de memória como pressuposto
para uma verdadeira reconciliação, sem a qual as feridas permanecem, a vingança
não deixa de ser uma tentação e os perigos de repetição dos crimes em apreço
não estão de modo nenhum afastados. É a partir deste pressuposto que têm
operado (primeiro na África do Sul, e depois noutros países, como Timor-Leste)
as Comissões Verdade e Reconciliação.
É esta também a posição
em que se coloca São João Paulo II: «O perdão não se opõe de modo algum à
justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da
ordem violada» (n. 3). As “exigências de reparação da ordem violada” começam,
pelo dever de verdade e memória, mas não se restringem a isso. Há que definir
solenemente o mal como mal. Mas não bastará esse dever de verdade para reprovar
o mal.
Quem reconhece os seus
erros, se arrepende e pede perdão, reconhece também a dívida que contraiu para
com as vítimas e para com a sociedade[7], a
necessidade de «reparação da ordem violada». A este respeito, refere-se, por
vezes, o exemplo retratado no célebre romance de Dostoievsky Crime e Castigo,
que reflete a exigência, provocada pelo remorso pelo crime cometido, de
expiação através do sofrimento e da pena.
A corrente da “justiça
restaurativa” (a que acima me referi) não ignora as “exigências de reparação da
ordem violada” (para continuar a usar a expressão da mensagem de São João Paulo
II que vimos comentando). Até acentua essas exigências na perspetiva dos
direitos da vítima, esquecidos no modelo retributivo tradicional, focado antes
na violação da Lei em abstrato. Tem todo o mérito em fazê-lo. Mas também pode
cair no desequilíbrio oposto: confundir a reparação penal com a reparação
civil. Para além dos danos da vítima, há danos sociais. Há crimes de vítima
determinada, mas também crimes de vítima indeterminada (a corrupção. por
exemplo). Mesmo nos crimes de vítima determinada, não está em causa apenas o
interesse da vítima, está em causa a tutela de valores e bens jurídicos (mais
do que uma Lei em abstrato) que estruturam a vida comunitária. Daí que, em meu
entender, as “exigências de reparação da ordem violada” não se possam limitar à
reparação do dano da vítima (por vezes até impossível: veja-se o caso do
homicídio).
Mas, como vimos, para
alcançar a plena harmonia social não basta a justiça. O perdão e a
reconciliação permitem a inversão da lógica da resposta ao mal com o mal, o
restabelecimento de laços que se quebraram, um recomeço, uma nova vida.
Permitem, segundo a mensagem de São João Paulo II que continua a servir-nos de
guia, «a cura em profundidade das feridas que sangram nos corações»
Será isso este objetivo
incompatível com a própria essência da pena?
A pena pode ser um
instrumento de reconciliação entre o agente do crime e a sociedade, que permite
recompor aquela comunhão que a prática do crime rompeu. Exprime-se, a este
respeito, o juiz francês Michel Anquestil:
«O delinquente age
contra ele ao agir contra a sociedade, pois destrói qualquer possibilidade de
conquistar a felicidade, ao retirar-se da comunhão, ao marginalizar-se a si
próprio (...) A pena humanizada não é, em rigor, vingança cega, violência
destinada a dominar quem é punido: ela é abertura a uma comunhão restabelecida,
ela traz consigo a oferta de perdão, ou não é justa! (...) No fundo, o ideal da
pena, a esperança que ela traz consigo é o de convidar quem é punido a
tornar-se o filho pródigo da parábola. (...) Quando a culpa é reconhecida,
raramente o princípio da pena é contestado. São as condições do julgamento, e
depois da execução da pena, que suscitam um formidável sentimento de revolta e
matam à nascença a possibilidade de reconciliação».
Também não me parece
incompatível associar o alcance retributivo da pena ao alcance ressocializador
desta. A pena deve favorecer a reinserção social do agente do crime e deverá
ser concebida como apelo e convite à “reconciliação” entre esse agente e a
comunidade ofendida com a prática do crime. O primeiro passo para essa
“reconciliação” é a aceitação, pelo agente, da necessidade de “saldar” a
“dívida” que contraiu com a prática do crime. Quando há arrependimento sincero,
essa aceitação, ou até essa exigência, é espontânea e natural.
No entanto, a
associação entre a teoria da retribuição e a lei de talião (“olho por olho, dente por dente”), como resposta a um
mal com outro mal, persiste. É certo que a pena representa um mal em sentido
fáctico, não em sentido ético, e que entre a gravidade da pena e a gravidade do
crime deve verificar-se uma relação de proporcionalidade, não uma relação de
equivalência. Também é certo que a pena tem uma dimensão aflitiva
incontornável: se não provocasse sofrimento (fosse qual fosse a sua
finalidade), não seria uma pena, seria um prémio ou uma medida assistencial.
Mas é difícil encontrar numa pena paradigmática como a de prisão uma dimensão
social positiva que contrarie a imagem da resposta a um mal com outro mal.
Embora reconheça que a retribuição parece corresponder a uma exigência
co-natural dos seres humanos, o filósofo do Direito italiano Mario Cattaneo
considera «dificilmente superável a ideia de que na sua base esteja a ideia de
vingança».
Para superar esta
suspeita, ou a lógica da resposta a um mal com outro mal, haverá, então, que –
em meu entender – conceber e aplicar penas com uma dimensão social positiva
marcante, como sucede, de forma paradigmática e exemplar, com a pena de
prestação de trabalho a favor da comunidade[8].
Nesta, será nítido que ao mal do crime se responde com um bem, com uma atividade
socialmente meritória. Mas a dimensão retributiva não está nela ausente, pois
não deixa de ter um alcance sancionatório efetivo (não se confunde com uma
medida puramente educativa ou de apoio social). Mesmo assim, sem deixar de ter
um alcance retributivo, é reveladora de um esforço (recíproco) de aproximação e
“reconciliação” entre o agente do crime e a comunidade. O agente do crime é
reconhecido como pessoa útil à comunidade (não estigmatizado, como sucede com a
pena de prisão) e, por isso, de acordo como o espírito que preside à função
desta pena, o trabalho escolhido deve corresponder às habilitações e
capacidades desse agente e não deve, de modo algum, ser humilhante. O benefício
do trabalho para a comunidade corresponde a uma forma simbólica de “saldar” uma
dívida para com esta e de, assim, recompor uma relação que foi quebrada com a
prática do crime.
Pode ser encarada noutra perspetiva a relação entre justiça e
misericórdia, que também já me foi proposta: o exercício da justiça (em em
particular da justiça penal) como forma de concretização da obra de
misericórdia espiritual corrigir os que
erram.
Corrigir os que erram, como obra de misericórdia
espiritual, é algo mais do que condenar numa pena; o objetivo a alcançar
liga-se a uma transformação interior (uma verdadeira metanoia). Poderá, porém, dizer-se que esse não pode ser o objetivo
de um juiz, ainda mais num Estado laico e assente no respeito pela liberdade da
pessoa.
É verdade que corrigir os
que erram não tem para o juiz o mesmo significado que tem para um pai ou
uma mãe diante de um filho, ou um sacerdote diante de um penitente. A pretensão
de transformar interiormente um cidadão com recurso ao aparelho coercivo do
Estado é própria de Estados totalitários. Por isso, a doutrina penal hoje mais
influente limita-se a apontar como objetivo da pena a da “reinserção social” do
agente do crime, e não tanto a sua “reeducação” (expressão adotada, porém, no
artigo 27º da Constituição italiana)
A este respeito, há
quem saliente, até, que o sistema jurídico-penal não pode pretender do agente
do crime a adesão a qualquer pauta de valores, bastando-se com a conformação
externa à lei vigente e a abstenção da prática de crimes. Ao Estado democrático
e pluralista faleceria, até, legitimidade para optar por uma qualquer pauta de
valores e impô-la. Mas – respondo eu a esta tese - será possível conduzir um
agente à observância dos ditames do sistema jurídico-penal sem apostar na sua
motivação interior? E essa motivação não terá de ser mais sólida do que a que
decorre do temor das sanções e das desvantagens que, no plano puramente
utilitarista, lhe possam estar associadas?
Um Estado democrático
não é um Estado “agnóstico” no plano dos valores, ou assente no relativismo
ético, porque a própria democracia não se reduz a um conjunto de regras
processuais e terá de assentar num forte suporte ético (que parte do princípio
da dignidade da pessoa humana). E o sistema jurídico-penal há de espelhar a
pauta de valores própria da democracia. Estes valores não podem, por coerência
interna, ser impostos (numa qualquer
espécie de “lavagem ao cérebro”), mas podem, e devem ser propostos. A adesão a esses valores não pode ser imposta aos
agentes de crimes, mas tal não significa que não seja pretendida ou almejada pelo
próprio sistema jurídico-penal.
E a postura do juiz há
de refletir isso mesmo. Não deve ter receio de assumir o papel também
pedagógico (no sentido indicado), para com o condenado e para com a sociedade
em geral, que lhe cabe. No plano prático, o arrependimento e a chamada
“internalização” da norma e valores em causa não serão irrelevantes, serão
valorados como circunstâncias atenuantes, sendo certo que a ausência de
arrependimento e de “internalização” da norma e valores em causa não poderão
ser valorados como circunstâncias agravantes (não beneficiar de uma
circunstância atenuante não é o mesmo que arcar com uma circunstância agravante;
não se trate de um simples jogo de palavras, esta subtil diferença tem
consequências práticas).
A transformação
interior do condenado não pode, pois, ser imposta,
mas pode, e deve, ser proposta. A
esta luz se compreendem as palavras de São João Paulo II na homilia dirigida
aos reclusos da prisão romana Regina Coeli, a 9 de julho de 2000: «A
pena, de facto, não pode reduzir-se a uma simples dinâmica retributiva, nem
sequer pode configurar-se como uma retorsão social ou uma espécie de vingança
institucional. A pena e a prisão têm sentido se, enquanto afirmam as exigências
da justiça e desencorajam o crime, servirem para a renovação do homem,
oferecendo a quem errou uma possibilidade de refletir e de mudar de vida, para
se inserir a pleno título na sociedade» (n.5). Esta renovação do homem é
também uma forma de fazer justiça às vítimas, que não são esquecidas: «As
próprias pessoas às quais causastes sofrimento talvez sintam ter tido mais
justiça ao olharem para a vossa mudança interior do que para a pena por vós
expiada.» (n.5).
Nesta linha, afirmou
recentemente o Papa Francisco, na audiência de 3 de fevereiro, a que atrás me
referi: «só quando o culpado reconhece o mal e muda
de vida é que a justiça triunfa». Só assim se vence realmente o mal, sem
nos limitarmos a conter o seu avanço. È neste sentido que a misericórdia «leva ao cumprimento da verdadeira justiça».
Porém…
A experiência
mostra-nos que o objetivo de correção do agente do crime e de reconciliação
entre ele e a vítima, ou entre ele e a sociedade, é muitas vezes longínquo. A
regeneração do agente do crime pode ser por este recusada, e contra isso nada
podemos fazer; o ódio e ressentimento das vítimas podem permanecer; e contra
isso nada podemos fazer.
Talvez devêssemos dar
razão ao filósofo do Direito Francesco d´Agostino, presidente da União dos
Juristas Católicos Italianos, quando afirma que «de todas as atividades
práticas através das quais se estrutura a existência humana, o Direito Penal é
aquela na qual brilha mais intensamente a nostalgia da caridade»[9].
Do Direito Penal e do
sistema penal enquanto sistema impessoal e anónimo, não podemos, na verdade,
esperar muito. Mas quando esse sistema se torna vivo pela ação das pessoas,
cada palavra e cada gesto de cada uma dessas pessoas (magistrados, advogados,
funcionários judiciais e prisionais, visitadores voluntários) pode ser
expressão de caridade e misericórdia. Sem descurar a importância das leis e das
estruturas, a correção e a reconciliação pretendidas hão de depender
decisivamente de cada um desses gestos e palavras. Também aqui, como noutros
âmbitos, o papel decisivo é o do testemunho pessoal.
Vila Real, 12 de fevereiro de 2016
Pedro Maria
Godinho Vaz Patto
Juiz Desembargador do Tribunal da Relação
do Porto
[1] Todas as mensagens e discursos papais
adiante referidos estão acessíveis em www.vatican.va.
[2]
O nome de Deus é misericórdia-uma conversa com Andrea
Tornielli,
tradução portuguesa, Planeta, Lisboa, 2016, pgs. 85 e 86.
[3] A Arte de Amar; tradução portuguesa, Cidade
Nova, Abrigada, 2006.
[4]
Recentemente, causou justificado escândalo o episódio de alguns magistrados
que, de forma mais ou menos pública, comentaram jocosamente a prisão de um
político. Talvez nunca a prisão de alguém (como a morte de alguém) deva ser
motivo para comentários jocosos da parte de qualquer pessoa. Muitos menos da
parte de um magistrado.
[5]
O Papa Francisco vai até mais longe no sentido do respeito pela dignidade dos
condenados. Diz no livro-entrevista já acima referido (cit., pg. 55):
«(…) Relembreio-os (aos
reclusos da prisão de Palmasola, na Bolívia) de que também São Pedro e São
Paulo estiveram presos. Tenho um especial carinho pelos que vivem na prisão,
privados de liberdade. Fiquei muito ligado a eles, por esta consciência do meu
ser pecador. De cada vez que entro numa prisão para celebrar uma missa ou para
uma visita, tenho sempre este pensamento: porquê eles e não eu? Devia estar
aqui, merecia estar aqui. A sua queda poderia ser a minha, não me sinto melhor
do que os que tenho perante mim. Por isso, repito e rezo: porquê ele e não eu?
Poderá impressionar, ma consolo-me com Pedro: renegara Jesus e apesar disso foi
escolhido.
[6] Ver The Little Book of Restorative Justice, Goodbooks, Intercourse,
P.A., 2002; e Changing Lenses, A New
Focus for Crime and Justice, Herald Press, Scottdale, P. A., 2006.
[7]
No livro-entrevista acima referido (cit,
pg. 85), o Papa Francisco também se refere à pena como forma de pagamento
de uma dívida, salientando, porém, a importância da reinserção social depois do
cumprimento da mesma: «Pensemos no quanto se está a fazer pela reinserção
social dos presos, para que quem errou, após pagar a sua dívida à justiça,
possa encontrar mais facilmente um trabalho e não ficar à margem da sociedade.»
[8] É de
salientar que no Código Penal português a aplicação desta pena supõe sempre o
consentimento do condenado (artigo 58º, nº 5) e pode substituir penas de prisão
não superiores a dois anos (artigo 58º, nº 1).
[9] Ver La sanzione nella Esperienza Giuridica, G. Giappichelli, Turim,
1989, pgs. 132 e 133.
Sem comentários:
Enviar um comentário