Estamos nestes
dias a comemorar os cinquenta anos da abertura do Concílio Vaticano II. O Papa
quis associar esta comemoração à celebração do Ano da Fé, que também agora se
inicia. E também agora se iniciou o Sínodo dos Bispos, que tem por tema a nova
evangelização.
A
hipótese de reconciliação com os grupos cismáticos tradicionalistas seguidores
de Marcel Lefebvre, em que Bento XVI tanto se empenhou (e que por estes dias se
soube não se vai concretizar para já), tem como condição inultrapassável a
aceitação por estes do magistério do Vaticano II, que João Paulo II definiu
como «uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa»,
cujos textos «não perderam o seu valor, nem a sua beleza».
Na
Carta apostólica relativa ao Ano da Fé,
Bento XVI afirma: «…se lermos e recebermos, guiados por uma justa hermenêutica
(nos sentido de “interpretação”), o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais
uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja». Esta alusão à “justa
hermenêutica” relaciona-se com um seu célebre discurso à Cúria romana de 2005,
em que o Papa apresenta a “hermenêutica da reforma” como a linha correcta de
interpretação dos textos do Concílio: não como uma ruptura com o magistério
anterior (como se o Espírito Santo só tivesse assistido a Igreja a partir do
Concílio), mas como um aperfeiçoamento e aprofundamento desse magistério, que
se torna, assim, sempre vivo e adequado aos tempos actuais.
Muitas são as
luzes inovadoras com que o Vaticano II enriqueceu a Igreja dos nossos dias:
desde o reconhecimento da liberdade religiosa à unidade de todos cristãos e ao
diálogo inter-religioso; ou à redescoberta da riqueza da Sagrada Escritura,
antes esquecida em muitos ambientes católicos (a primeira comunidade do
Movimento dos Focolares, era acusada por alguns ambientes tradicionais de
Trento, antes do Concílio, de “protestantismo”, por dar grande relevo à vida do
Evangelho).
Outra dessas
luzes foi a valorização da missão dos leigos na Igreja e na renovação cristã da
sociedade, dantes muitas vezes subalternizados como se fossem um “proletariado
espiritual” (uma espécie de terceira divisão, em, termos futebolísticos), na
expressão usada por Igino Giordani, político e intelectual italiano. Frutos do
Concílio são vários movimentos laicais, que floresceram de uma forma que alguém
comparou a “uma primavera” ou “um novo Pentecostes”.
Uma outra
dessas novidades diz respeito à relação da Igreja com o mundo contemporâneo. Os
concílios anteriores da história da Igreja normalmente surgiam para condenar
heresias. A uma postura de julgamento e condenação, de combate e defesa,
sucede-se uma postura de abertura, compreensão, diálogo e serviço. As palavras
iniciais da Gaudium st Spes são
suficientemente elucidativas a respeito desta nova atitude. A Igreja procura identificar-se
(poderíamos dizer: “fazer-se um”) com os homens e as mulheres do nosso tempo:
«As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso
tempo, sobretudo dos pobres e dos aflitos, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe
de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração». A Gaudium et Spes sublinha os auxílios e
contributos da Igreja para o mundo contemporâneo (nºs 41 a 43), mas também a
ajuda que deste recebe (n. 44), pois está atenta aos sinais de Deus que através
deste lhe podem chegar (os chamados sinais
dos tempos). De entre estes sinais, destaca o do caminho em direcção à
unidade: «A Igreja reconhece tudo o que há de bom no dinamismo social dos
nossos dias, sobretudo o movimento para a unidade, o processo duma sã
socialização e da associação civil e económica. Com efeito, promover a unidade
está de acordo com a missão profunda da Igreja, pois ela é “em Cristo como que
o sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de
todo o género humano”» (n. 42).
Pediram-me
recentemente para analisar as relações entre a Igreja e a sociedade portuguesa
nos últimos cinquenta anos, precisamente à luz das novidades que trouxe o
Concílio no plano das relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Como só
tenho experiência directa dos tempos mais recentes (porque também eu fiz há
pouco cinquenta anos, como o Concílio), detive-me na análise dessa relação
nestes tempos mais recentes.
Em
resumo, parece-me poder dizer que há campos em que a sociedade portuguesa, de
forma alargadamente consensual, incluindo os seus sectores culturalmente mais
influentes, reconhece o contributo positivo da doutrina e da acção da Igreja.
São sobretudo os relativos à justiça social e ao combate à pobreza. Neste
âmbito, e particularmente em tempos de crise como o actual, respeita-se e
reconhece-se a autoridade de quem está próximo dos pobres e de quem mais sofre,
de quem conhece esses sofrimentos e procura debelá-los, e também sabe ser
consciência crítica a respeito das opções e caminhos que temos seguido. Neste
campo, de um modo geral, reconhece-se que a Igreja pretende servir, mais do que
dominar ou impor uma sua doutrina, na linha para que claramente aponta o
Concílio. Na sensibilidade espontânea perante as injustiças sociais, podemos
descobrir o reflexo das raízes cristãs da nossa cultura portuguesa, que estão
presentes mesmo em quem não se identifica como católico (às vezes até mais
acentuadamente do que em quem se identifica como católico).
Penso que,
mesmo assim, algumas reservas se impõem a esta minha conclusão sobre o
reconhecimento da mensagem e acção da Igreja no âmbito da justiça social e do
combate à pobreza.
Não podemos
ignorar que a atenção aos alertas da Igreja (em tempos como o actual, mas
também noutras alturas) corre o risco de ser instrumental e de depender de
estratégias políticas. A atenção é maior quando se está na oposição e isso
serve para denunciar políticas do governo em funções (ora um, ora outro), mas é
menor quando as posições se invertem. Por outro lado, a atenção é maior nestas
matérias, mas menor (ou torna-se mesmo hostilidade), noutras, igualmente
importantes na perspectiva do magistério ético – social da Igreja, como
sublinharei de seguida.
E também me
parece importante advertir para o seguinte.
Não me parece
suficiente que se reconheça o papel da Igreja como uma espécie de “almofada” ou
“amortizador” que, com a sua ampla rede de instituições de solidariedade social,
lá está para atenuar os estragos provocados pela dureza supostamente inevitável
das opções de política económica. Mais do que isso, mais do que reduzir esses
danos, seria importante enfrentá-los na sua raiz. Mais do que tentar apagar fogos,
seria importante preveni-los e evitá-los. Mais do que recorrer a um lenitivo,
seria importante evitar e combater a doença. E para isso, seria importante
outra atenção ao magistério social da Igreja nas próprias opções de política
económica e social, o que levaria a questionar essa suposta inevitabilidade de
algumas opções.
Com estas
reservas, parece-me de sublinhar o eco positivo que tem tido, e poderá
continuar a ter, na sociedade portuguesa a mensagem da Igreja no campo da
justiça social. Recordo, a este respeito, e só a título de exemplo, as palavras
de apreço pela Caritas in Veritate
dos dirigentes da C.I.P. e da C.G.T.P. numa conferência organizada pela
Comissão Nacional Justiça e Paz no ano passado.
Por contraste
com este eco, não podemos deixar de atender a matérias em que as políticas
legislativas e a opinião culturalmente dominante (que nuns casos coincide com a
autêntica opinião da maioria das pessoas; mas noutros não, pois se trata da
opinião de minorias mais influentes) se têm afastado notoriamente da doutrina e
da mensagem da Igreja. São aqueles temas que nos habituámos a designar como fracturantes: a defesa da vida nas sua
fases inicial e terminal, questões várias de bioética (a questão recente da
maternidade de substituição, por exemplo), a defesa da família, a partir da sua
própria definição (já não se fala, por isso, em família, mas em famílias).
Nestes campos, deve claramente falar-se em perda de influência da Igreja na
sociedade portuguesa. Não será descabido identificar aqui os sinais mais
evidentes dessa perda de influência. A Igreja vê-se a remar sozinha contra a
maré, a defender valores e modelos que parecem definitivamente ultrapassados.
Neste quadro,
tem sentido, relembrar a postura inovadora de abertura e diálogo com o mundo
contemporâneo do Concílio e, em particular, da Gaudim et Spes ? Não poderemos ser tentados a pensar que não vale a
pena essa abertura, porque a Igreja se aproximou do mundo contemporâneo de
braços abertos e este, afinal, dela se afastou ainda mais?
Parece-me que,
a este respeito, são de rejeitar por igual duas atitudes.
Uma, a de
esquecer ou desvalorizar estes temas, que se tornam incómodos porque dividem
(porque são fracturantes) e porque
insistir na defesa dos princípios tradicionais afastaria a Igreja do mundo
contemporâneo, contra o que pretende o Concílio. Haveria que acentuar apenas,
ou prevalentemente, aquilo que mais se conforma ao “espírito do tempo”, porque
assim se favorece o diálogo.
Outra, a de
considerar superada a postura de abertura e diálogo com o mundo contemporâneo e
assumir uma atitude mais enérgica, de defesa e combate, à imagem do que se
verificava antes do Concílio.
São duas
atitudes que encontram eco em diferentes sensibilidades no âmbito interno da
Igreja e também em diferentes expectativas a respeito do sentido das
intervenções da hierarquia, incluindo, naturalmente, a da Igreja portuguesa.
Já se tem tido
que a visão do Concílio a respeito do mundo contemporâneo é demasiado optimista
ou ingénua e que a evolução posterior veio a tornar injustificado tal
optimismo. Provavelmente, os Padres Conciliares, ao exaltarem as virtudes do
progresso técnico próprio da modernidade, não imaginariam onde se chegaria
cinquenta anos depois quanto aos riscos de abusos e manipulação no âmbito da
bioética. Noutro âmbito, não imaginariam que desse progresso pudesse resultar uma
crise ecológica como a que vivemos hoje. Não imaginariam que a difusão do
aborto chegasse onde chegou. Não imaginariam onde chegaria a crise da família,
com o tão grande generalização do divórcio (um para cada dois casamentos). Não
imaginariam certamente que viesse a pretender-se redefinir o casamento. Quando
se falava em excesso de população, não imaginariam que cinquenta anos depois fosse,
pelo contrário, a queda da natalidade o mais grave dos problemas para muitas
sociedades.
Mas a visão
dos Padres Conciliares não é ingénua ou excessivamente optimista. Depois de
enaltecer o valor da actividade humana e do desenvolvimento (que correspondem à
vontade de Deus), a Gaudium et Spes (n.
37) relembra que essa actividade está corrompida pelo pecado: «A Sagrada
Escritura, com a qual está de acordo a experiência dos séculos, ensina à
família humana que o progresso humano, que é um grande bem para o homem, traz
consigo uma grande tentação: uma vez perturbada a hierarquia dos valores e
confundindo o mal com o bem, os indivíduos e as colectividades só consideram os
interesses próprios, e não os dos outros»; «De facto, trava-se ao longo de toda
a história humana uma árdua batalha contra os poderes das trevas, a qual,
começada na origens do mundo durará, como diz o senhor, até ao último dia»;
«Por isso, a Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, enquanto
reconhece que o progresso humano pode servir para a verdadeira felicidade do
homem, não pode deixar de se fazer eco da voz do Apóstolo: Não vos conformeis com o tempo presente (Rm 12, 2), isto é, com
aquele espírito de vaidade e malícia que transforma a actividade humana,
ordenada pelo serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado».
Ao caracterizar
o mundo contemporâneo, a Gaudium et Spes (n.
9) realça as suas luzes, mas também as suas sombras: «o mundo moderno aparece,
ao mesmo tempo, poderoso e fraco, capaz do melhor e do pior, enquanto na sua
frente se rasga o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da
regressão, da fraternidade ou do ódio».
A Igreja não
seria fiel à sua missão, nem serviria o mundo de hoje como pretende o Concílio,
se, em nome de uma falsa e inconsistente busca de consenso, se demitisse de
alertar para retrocessos que representam a destruição de um precioso legado
civilizacional que é fruto da mensagem cristã. Pode fazê-lo sozinha, pode
“clamar no deserto” ou “remar contra a corrente”. Mas não pode deixar de o
fazer. Se não for ela a fazê-lo, ninguém o fará. Muitos acabarão por reconhecer
nessa sua obstinação um verdadeiro serviço, talvez quando se aperceberem a que
consequências pode chegar a destruição desse legado. Dou-vos apenas um exemplo.
Um artigo
publicado recentemente numa influente revista de ética médica, que se tornou
famoso e suscitou grande polémica, veio afirmar a legitimidade da morte
intencional de crianças recém-nascidas quando elas possam representar um fardo
para os seus pais ou a sociedade. Seria assim porque entre o feto e o
recém-nascido não há diferenças substanciais, um e outro não têm o estatuto de
pessoas porque não têm capacidade de dar valor à sua existência (é claro que
esse valor existe, mesmo quando os seus titulares dele não têm consciência,
pois é precisamente quando, pela debilidade associada à idade, à doença ou
deficiência, o ser humano não tem sequer a consciência do valor da sua
existência que mais se justifica o cuidado dos outros e a protecção da ordem
jurídica). Esta tese suscitou vivo repúdio, porque com ela é atingido um
precioso legado civilizacional ainda bem vivo, que é fruto da revolução cristã
e estava ausente na antiguidade pagã, onde se aceitava o infanticídio e o
abandono de recém-nascidos. Mas é uma tese que é decorrência lógica do
princípio que conduz à pretensa legitimação do aborto (por isso, os seus
autores falam em aborto pós-natal). Se
não houver quem, com constância e desassombro, como vem fazendo a Igreja, ponha
em causa esse princípio, vemos, por aqui, onde se pode chegar.
Ser fiel ao
magistério do Concílio não nos leva, pois, a ignorar estes temas, nem a ocultar
a verdade em nome do diálogo e da caridade (senão esta, tornar-se-ia, como diz
a Caritas in Veritate (n. 3), « um invólucro vazio que se pode
encher arbitrariamente»).
Mas isso
também não significa que há que “cerrar fileiras” como se não tivesse havido o
Concílio, esse grande dom do Espírito Santo à Igreja, o acontecimento mais
relevante da sua história no último século.
Significa
antes, por um lado, privilegiar o anúncio sobre a denúncia. Significa, que mais
do que dizer “não” (e mesmo que, muitas vezes, se imponha fazê-lo), há que
dizer “sim”, porque a mensagem de Jesus e da Sua Igreja é um “sim”, mais do que
um “não”. Significa que mais do que denunciar ataques à vida e à família,
importa exaltar a beleza da vida e da família. Pode servir-nos de exemplo a
postura do Papa Bento XVI que nas suas viagens, por vezes em contextos de
acesas polémicas, antes de tudo, enaltece a beleza da fé e da vida que dela
brota. E reside aí o segredo que explica o sucesso de visitas com prognósticos
tão reservados à partida (sucedeu assim entre nós).
Por outro
lado, a mais eloquente e convincente (talvez mesmo irrefutável) das mensagens é
a que passa pelo testemunho. Já Paulo VI dizia que a época contemporânea escuta
mais facilmente os testemunhos do que as lições dos mestres. E afirmou Bento
XVI aos bispos portugueses em Fátima, há dois anos: «O apelo corajoso e
integral aos princípios é essencial e indispensável; todavia a mera enunciação
da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua
liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com
pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando
testemunho d’Ele.»
Recordo a propósito um episódio que se passou
comigo há uns meses atrás.O cardeal Ennio Antonelli, presidente do Conselho
Pontifício para a Família esteve entre nós há alguns meses atrás e apresentou
na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa uma conferência sobre a Familiaris Consortio que se integrava
num colóquio sobre “família e direito” a propósito do trigésimo aniversário da
publicação desta exortação apostólica. Consciente das distância entre o modelo
de família aí apresentado e o actual direito de família de quase todas as
nações, e da própria realidade sociológica da família hodierna, usou uma imagem
de João Paulo II para sublinhar que não podemos desistir de apontar a esse
modelo: devemos ajudar as pessoas a “subir a montanha pelo seu pé” e não tentar
“abaixar a montanha”. Quando o fui cumprimentar em nome de um movimento de
famílias que ela conhece bem, respondeu prontamente: «deveríeis ser vós a
falar, e não eu, a apresentar o vosso testemunho, provando, assim, que é
possível a vida da família proposta pela Familiaris
Consortio».
A este ponto,
e a propósito de testemunho, tenho de confessar que não estou a respeitar
integralmente o pedido que me fez o Sr. Pe. Manuel Coutinho quando me convidou
para vir falar-vos. Pediu-me ele que desse sobretudo um testemunho vivencial,
mais do que uma lição teórica. No fundo para, mais do que dizer como se deve
viver o Concílio hoje, dissesse como procuro eu viver o Concílio hoje. Vou,
então, respeitar agora o pedido que me foi feito, dando-vos alguns exemplos de
como procuro pôr em prática algumas das ideias de que vos falei.
Falei-vos da
valorização do papel dos leigos na Igreja e no mundo (já não um “proletariado
espiritual” ou uma “terceira divisão”).
Como cristão
leigo, sinto que sou chamado a iluminar e animar com o espírito do Evangelho o
âmbito social em que trabalho. Cada um de vós será chamado a fazer o mesmo no
seu âmbito, talvez bastante diferente do meu. De qualquer modo, é-nos lançado
um desafio nem sempre fácil, porque não temos nenhum livro de receitas sobre
como se faz isso (embora a doutrina social da Igreja nos sirva de ajuda) e
temos de ser nós a descobri-lo.
Sou juiz há
vários anos, trabalhei durante alguns desses anos como formador de futuros
magistrados, quase sempre na área criminal.
Tenho
reflectido e estudado a questão da reacção ao crime e dos fins das penas
criminais numa perspectiva cristã. No âmbito dessa reflexão e desse estudo li
um livro muito interessante de um teólogo evangélico (Christopher Marshall)
sobre essa questão (Beyon Retribution A
New Testament Vision for Justice, Crime and Punishment, Eerdmann, Grand
Rapids, Cambridge, 2001) que começa por dizer logo no início desse livro (p. 1)
que «o crime é uma das áreas do comportamento humano mais difíceis de lidar
numa perspectiva cristã».
Também no
âmbito dessa reflexão e desse estudo, muitas vezes tenho presente as palavras
de João Paulo II na sua mensagem para o dia mundial da paz de 2002 sobre a
justiça e o perdão. Diz o Beato João Paulo II nessa mensagem que a justiça e o
perdão não são termos opostos ou alternativos, mas complementares. « (…) o
perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça. Na realidade, a
verdadeira paz é « obra da justiça » (Is 32, 17). (…) Mas, como a
justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às
limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa
maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em
profundidade as relações humanas transtornadas. Isto vale tanto para as
tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais
alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à
justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da
ordem violada; mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade
da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das
hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram
nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.»
O desafio com
que me deparo e de que vos falei é, então, o de concretizar estas ideias da
mensagem de João Paulo II.
É claro que
não posso obrigar as vítimas de crimes a perdoar os criminosos. É minha
obrigação “fazer justiça” e esta não se opõe ao perdão, é um seu pressuposto.
Mas só a reconciliação e o perdão permitem restabelecer plenamente aquela
harmonia que foi quebrada pela prática do crime. O meu papel é, então, o de
abrir as portas a essa reconciliação, facilitando-a (sem a impor, porque não a
posso impor) e não a dificultando. Como é que o tenho feito?
Em muitas
situações, o processo-crime pode terminar com uma desistência de queixa
associada a alguma forma de reparação material e moral. Tive algum sucesso nas
tentativas que fazia e (quando era formador) explicava aos meus formandos que
me parecia residir o segredo desse sucesso no esforço que eu fazia de me
identificar plenamente com a situação e o sofrimento das duas partes (sentir
este como “meu”), sem nunca o desvalorizar o sofrimento da vítima, para a qual
aquele processo seria o único quando para mim seria um entre muitas centenas.
Para além da
reconciliação entre agente do crime e vítima, há a da reconciliação entre o
agente do crime e a sociedade. Nessa perspectiva, a nossa lei favorece penas
alternativas à pena de prisão, pois esta não favorece a inclusão social do
agente do crime, antes acentua a sua exclusão e marginalização sociais. Por
vezes, porém essas penas são encaradas como reflexo de algum laxismo que não se
coaduna com a necessária afirmação da gravidade dos crimes em causa.
Neste
contexto, desde há vários anos tenho procurado aplicar a pena de prestação de
trabalho a favor da comunidade, estudando as suas vantagens e dificuldades de
aplicação e partilhando (quando era formador) os frutos dessa minha experiência
e desse meu estudo com os meus formandos. Quando comecei a trabalhar, esta pena
era pouco aplicada (na altura, fui até convidado para a apresentar num vídeo de
divulgação sobre ela, por ser dos poucos juízes que a aplicava), mas agora já
não é assim.
E porque é que
me parece que esta pena tem grandes virtualidades? Precisamente porque, sem
deixar de condenar o crime, de fazer com o que o condenado “salde a sua dívida”
para com a sociedade (por isso, tem de trabalhar, com o que isso tem de penoso),
não o exclui, não o estigmatiza (como faz a prisão), mas o valoriza como pessoa
útil, permitindo, assim, restabelecer aquele laço entre ele a comunidade que a
prática do crime quebrou. Concilia-se, assim, a justiça, o castigo, com a
reconciliação entre o criminoso e a comunidade. Ao mal do crime responde-se não
com outro mal (como é próprio da vingança), mas com um bem, um trabalho
socialmente útil.
Também como
cristão leigo, fui descobrindo que Deus me chama a iluminar com a luz dos
valores evangélicos não apenas o meu campo de actuação profissional, mas também
a chamada “opinião pública” e os debates sobre questões éticas com reflexos na
legislação. De cada vez que surge algum desses debates na sociedade portuguesa
(o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.), procuro estudar a questão e tenho
escrito alguns textos sobre o tema em causa, textos que procuro divulgar de
várias formas, quanto mais não seja pela a internet
(através da qual se chega hoje a muita gente). Para além da internet, tenho tido ecos dessas minhas
ideias na imprensa da Igreja. Mas é claro que o meu objectivo é chegar a outra
imprensa de difusão mais larga, para além da imprensa da Igreja (lida por
pessoas normalmente já convencidas, ainda que sempre necessitadas de
esclarecimento). Nesse âmbito mais largo da imprensa, é mais difícil penetrar.
O meu esforço tem sido o de preservar com paciência e nunca desistir: envio
muitos artigos para publicação sobre temas de actualidade, que exigem trabalho
e estudo, mas que nem sempre são publicados. Mas nunca desisto e já fico
contente quando é publicado um entre quatro que envio.
Esses temas são os chamados temas fracturantes a que acima me referi,
temas polémicos, que dividem. Como também disse acima, viver o espírito do Concílio
Vaticano II, que convida ao diálogo com o mundo contemporâneo não significa
fugir a estes temas por serem temas polémicos e que nos colocam contra a corrente. O que procuro fazer é
ser fiel à verdade e à caridade, distinguindo o erro da pessoa que erra, condenado o erro sem deixar de respeitar e amar a pessoa que erra. Quando intervim em debates sobre o aborto, aquando dos
referendos, procurei fazê-lo pensando sempre na hipótese de me estar a escutar
alguma mulher que tenha cometido um aborto, evitando ser ofensivo para com ela.
Também fiquei particularmente feliz quando, a propósito da discussão sobre a
legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo alguém sugeriu que fossem
enviados os meus textos como resposta a umas pessoas de orientação homossexual
que se sentiam pessoalmente ofendidas com alguma argumentação, precisamente
porque esses textos não seriam ofensivos.
À luz do que
acima vos disse sobre a importância de pôr em relevo o anúncio mais do que a
denúncia, a beleza da fé cristã mais do que a condenação dos erros do mundo
contemporâneo, aquilo a que dizemos “sim” mais do que aquilo a que dizemos não,
tenho procurado não limitar os meus escritos e intervenções a esses temas
polémicos. Dou-vos apenas um exemplo.
Um filme de
que muito gostei de ver, precisamente porque é revelador da beleza da fé cristã
(um filme que muitos de vós conhecerão e que recomendo a quem não conheça), foi
o filme Dos homens e dos deuses,
sobre um grupo de monges trapistas franceses assassinados na Argélia. Depois de
o ver, resolvi escrever um comentário com a minha impressão e divulguei,
através da internet, esse meu
comentário entre o maior número de pessoas, incluindo os meus colegas de
trabalho. Ao ler esse meu comentário, um desses meus colegas foi ver o filme e
esse facto gerou entre nós um muito frutuoso diálogo sobre o conteúdo do filme,
que envolve temáticas espirituais a que normalmente são alheias as conversas
entre colegas. Encontrei, assim, um pretexto para evangelizar de uma forma
discreta e bem acolhida.
Bom, estes são
apenas alguns exemplos de como procuro viver a minha vocação de cristão leigo à
luz da mensagem do Concílio Vaticano II, aquela mensagem que é para nós, como
disse no início citando o Beato João Paulo II, a “bússola segura para nos orientar
no caminho do século que agora começa”.
Vila Real, 12 de Outubro de 2012
Pedro Vaz Patto
Sem comentários:
Enviar um comentário