TODOS
IRMÃOS
Têm sido muitos os elogios à encíclica Fratelli tutti. Numa sessão da
Assembleia Legislativa da Madeira, teceram tais elogios representantes de todos
os partidos políticos com assento nessa Assembleia. E assim também
representantes de todos os grupos parlamentares da Assembleia da República, que
receberam de um grupo de católicos (onde eu me incluía) a oferta a cada um dos
deputados de um exemplar da encíclica (uma iniciativa que partiu de Eugénio
Fonseca). Ouvi a uma dirigente comunista, depois de aludir à sua formação
católica juvenil e ao facto de há muito estar afastada da Igreja, manifestar o
seu entusiasmo pelo testemunho e mensagem do Papa Francisco, reforçado depois
da leitura desta encíclica. Até agora, as críticas que li vêm apenas de setores
católicos cada vez mais críticos do Papa Francisco.
Um desses elogios proveio da Maçonaria, em Espanha e na
Itália (lojas do Grande Oriente), que enalteceu o facto de a encíclica aderir
ao seu ideal de fraternidade universal, superando a posição tradicional da
Igreja Católica, que desse ideal se distanciava. Eis, então, um motivo para
tais setores criticarem a visão da encíclica, acusando-a de refletir esse ideal
de fraternidade maçónico, puramente humano e horizontal, sem abertura a Deus ou
com equiparação de todos os credos religiosos.
Essa crítica não tem, porém, razão de ser.
Na leitura da encíclica Fratelli tutti deverá ser salientado, antes de tudo, o que nela se
afirma a respeito do «fundamento último» da fraternidade. «Sem uma abertura ao
Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à
fraternidade. Estamos convencidos de que só com esta consciência de filhos que
não são órfãos, podemos viver em paz entre nós» (n. 272).
A respeito deste «fundamento último da fraternidade»,
afirma o filósofo espanhol Jesus Moran.
«Esta é a pregunta com a qual o cristianismo interpela a cultura contemporânea:
é possível uma fraternidade sem o Pai? E, poderemos dizer, sem a Mãe? O
cristianismo esvazia-se de sentido e torna-se culturalmente insignificante se
abdica de fazer, com coragem, esta pergunta, Ao fazê-lo, o cristão não se
distancia dos seus companheiros de viagem na história, diversamente crentes ou
não crentes, mas dá sem imposições aquilo que constitui os seu tesouro mais
precioso, uma transcendência com um rosto
pessoal, que fundamenta em profundidade todo o humano».
Li há algum tempo um comentário à encíclica de um
teólogo muçulmano, que salientava excertos do Corão na linha de um ideal de
fraternidade (https://setemargens.com/a-enciclica-fratelli-tutti-e-o-alcorao).
Mas em nenhum desses excertos se encontra esta visão de um Deus que é Pai de
todos.
Mais profundamente, afirma também a encíclica (n. 85):
Quem acredita que Deus ama cada ser humano com amor infinito confere-lhe uma
dignidade também infinita; se Cristo derramou o seu sangue por todos, ninguém
pode ser excluído do seu amor universal; a fonte suprema desse amor universal é
a própria vida íntima de Deus, uma unidade de três Pessoas que é origem e
modelo de toda a vida comunitária.
Citando a encíclica Caritas
in veritate, de Bento XVI, afirma Francisco que «a razão, por si só, é
capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica
entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade» (n. 272).
E citando a encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, afirma Francisco (dizendo
que se trata de um «texto notável»): «Se não existe uma verdade transcendente,
na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há
qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação
contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a
verdade transcendente, triunfa a força do poder e cada
um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o
próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. (…).
A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser encontrada na negação da
transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e,
precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que
ninguém pode violar; seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se
contra a minoria» (n. 273).
Este fundamento transcendente dos direitos humanos, que
corresponde à visão clássica do direito natural, assume hoje grande relevância,
pois é posto em causa em questões controversas, como o aborto, a eutanásia ou a
redefinição do conceito de família.
Depois
de relembrar que a Igreja valoriza o que de verdadeiro e santo existe nas
outras religiões, Francisco esclarece que, como cristãos, «se a música do
Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota
da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação
que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de
repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na
política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar
pela dignidade de todo o homem e mulher. Outros bebem doutras fontes. Para nós,
este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus
Cristo. Dele brota, para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o
primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à
comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos» (n.
277).
É
certo que na encíclica não é dada a estas verdades tanto destaque como é dado a
questões de ordem social e política, as quais também têm tido mais eco na
comunicação social. Penso que é assim porque o propósito do Papa, enunciado
logo na introdução da encíclica, é o de com esta lançar pontes entre fiéis de
todas as religiões, crentes e não crentes: «Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções
cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão
se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade» (n. 6). Por
isso, a encíclica aborda questões com que muitos não cristãos possam
identificar-se (e, de facto, se têm identificado). Mas de modo algum estas
verdades são ocultadas ou desvalorizadas.
Num
comentário a este aspeto, que considera inovador em relação à estrutura
tradicional das encíclicas anteriores à Laudato
Si`(nas quais era dado mais destaque à fundamentação teológica) afirma
Giuseppe Savagnone, diretor da Pastoral da Cultura da diocese de Palermo, em
texto publicado em português no portal do Secretariado Nacional da Pastoral da
Cultura (https://www.snpcultura.org/fratellI_tuttio_desafio_de_fazer
_sair_evangelho_e_igreja_do_gueto.html), que a intenção fundamental do Papa é a de «fazer
sair a Igreja e o seu anúncio do Evangelho do gueto em que a cultura do mundo
moderno há muito os relegaram, e apontar para valores que essa mesma cultura
acolheu e celebrou, para mostrar as suas raízes cristãs e denunciar a
incoerência da sociedade atual em relação a eles (…); mostrar que a Igreja tem
alguma coisa a dizer ao mundo contemporâneo, não em termos confessionais, mas
para responder a um problema que está diante dos olhos de todos, crentes e não
crentes, evidenciando que a fraternidade, central na mensagem cristã, é também
um valor humano, e que um mundo que não a conhece – como o nosso – é desumano».
O
ideal de fraternidade universal que é apresentado na encíclica confronta-se
hoje com muitas ameaças e desafios. Um deles é o do ressurgir dos
nacionalismos, sob várias formas e em muitos contextos, questão que nela é
analisada com particular desenvolvimento e profundidade.
Esse
nacionalismo assume, muitas vezes, características que já têm sido designadas
como de um nacionalismo de exclusão,
hostil ao estrangeiro, sob o lema de nós
primeiro. A encíclica fala, a este respeito, em «nacionalismos fechados,
exacerbados, ressentidos e agressivos» (n.º 11). Como já o fez noutras
ocasiões, o Papa censura estas correntes com clareza e sem subtilezas. Mas, ao
mesmo tempo, compreende as exigências de salvaguarda das identidades nacionais
que podem ser pretexto para a adesão a tais correntes. E dá uma resposta, como
já tinha feito noutras ocasiões, desta vez mais aprofundada.
A
encíclica salienta, por um lado, o fundamento bíblico dessa abertura à
fraternidade universal e, por outro lado, procura desfazer os receios de que
ela leve à perda das identidades nacionais e culturais diante de uma globalização
uniformizadora. Nesta perspetiva é encarado o fenómeno das migrações, que
também é encarado à luz de critérios de justiça social.
Quanto ao fundamento bíblico da abertura à fraternidade
que não exclui os estrangeiros, são evocadas (no n.º 61) passagens do Antigo
Testamento alusivas à memória que o povo judeu conserva de ter vivido como
estrangeiro no Egito, segundo a regra de tratar os outros como gostaríamos que
nos tratassem a nós. «O
estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e
amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito» (Lv 19, 33-34).
E
é apresentada a parábola do Bom Samaritano situando-a no contexto judaico, de
forte hostilidade para com os samaritanos: uma forte provocação no sentido da
superação de preconceitos e barreiras históricas e culturais (n. 83). Se
transpuséssemos tal parábola para os tempos de hoje, talvez pudéssemos
substituir, nalguns países europeus, a figura do “bom samaritano” pela do “bom
muçulmano”, e, em Portugal, talvez pela do “bom cigano”…
A encíclica
salienta como a abertura a outras culturas é enriquecedora para pessoas e
povos: «uma pessoa e um povo só são fecundos se souberem criticamente integrar
no seu seio a abertura aos outros» (n. 41). A globalização não deve uniformizar
e destruir «a riqueza e singularidade de cada pessoa e de cada povo» (n. 100).
Mas uma cultura que se fecha pode sofrer de “esclerose”. «As várias culturas,
cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas, para
que o mundo não fique mais pobre»; «(…) porém, sem deixar de as estimular a que
permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades»
(n. 134). «Não me encontro com o outro se não possuo um substrato onde estou
firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e
oferecer-lhe algo de autêntico»; «cada qual ama e cuida, com particular
responsabilidade, da sua terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve
amar e cuidar da própria casa» (n. 143). Porém: «Ao olhar para si mesmo do
ponto de vista do outro, de quem é diferente, cada um pode reconhecer nele as
peculiaridades da sua própria pessoa e cultura, as suas riquezas,
peculiaridades e limites»; «as outras culturas não constituem inimigos de quem
seja preciso defender-se, mas reflexos distintos da riqueza inexaurível da vida
humana» (n. 147); «uma sã abertura não ameaça a identidade, porque ao
enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia
nem mera repetição, mas integra as novidades, segundo modalidades próprias», o
que provoca «o nascimento de uma nova síntese, que, em última análise,
beneficia a todos» (n. 148). Isto é assim porque nenhum «povo ou cultura pode
obter tudo de si mesmo» (n. 150).
Como
em muitas outras ocasiões, o Papa Francisco recorre às imagens da esfera e do
poliedro para indicar o rumo que deveria seguir a globalização. «O universal
não deve ser o domínio homogéneo, uniforme e padronizado duma única forma
cultural imperante, que perderá as cores do poliedro» (n. 144). Na imagem do
poliedro, «cada um é respeitado no seu valor, o todo é mais do que a parte,
sendo também mais do que a simples soma dela», ao contrário da imagem da
«esfera global que aniquila», ou da «parte isolada que esteriliza» (n. 145).
Em conclusão: «Toda a cultura saudável é por natureza
aberta e acolhedora, não estática» (n. 146). Está aqui a resposta do Papa aos
receios de que se percam as riquezas das identidades nacionais e culturais (que
o Papa de modo algum ignora ou despreza) com a convivência e diálogo com outros
povos e culturas.
Não
podemos esquecer que a identidade nacional que muitas vezes se invoca para
justificar o nacionalismo de exclusão está ligada a uma identidade cultural
cristã. O perigo é, então o de reduzir as raízes culturais cristãs a uma
simples marca identitária instrumentalizada em função de estratégias políticas
que contradizem a própria mensagem cristã na sua intrínseca abertura à
fraternidade universal.
A
respeito da cultura cristã da Europa, afirmou Francisco no discurso que deixou escrito quando visitou a Universidade Roma Tre,
em 17 de fevereiro de 2017: «Considerando que a
primeira ameaça à cultura cristã da Europa vem precisamente do seio da Europa,
o fechamento em si mesmos ou na própria cultura nunca é a solução para voltar a
dar esperança e realizar uma renovação social e cultural. Uma cultura
consolida-se através da abertura e do confronto com as outras culturas, desde
que haja uma consciência clara e madura dos próprios princípios e valores». É
esta consciência clara e madura dos seus princípios e valores que tem faltado à
Europa- poderemos acrescentar. E que o nacionalismo de exclusão não vem
reforçar, pelo contrário, porque nega a substância desses princípios e valores,
mesmo que se apegue a símbolos externos, como a exposição pública do crucifixo.
À
luz destes princípios, é encarado também o fenómeno das migrações, cada vez
mais incontornável no mundo de hoje. Mas este é também encarado numa perspetiva
de justiça social, à luz do princípio do destino universal dos bens. Os bens de
um país não devem ser negados a quem provém de outro lugar (n. 124). Com as
migrações, todos podem ganhar, porque todos perdem quando em qualquer lugar há
pessoas e povos que não desenvolvem todo o seu potencial e toda a sua beleza
por causa da pobreza (n. 137). Mas o acolhimento autêntico supõe a gratuidade
que falta na atitude utilitarista de países que pretendem receber apenas
cientistas e investidores (n. 139).
Cada nação é co-responsável pelo desenvolvimento de todas as pessoas, o que
pode traduzir-se de dois modos, que não se excluem mutuamente: no acolhimento
de imigrantes e no contributo para o desenvolvimento dos países de origem
destes (n. 125). É verdade que o ideal seria que a emigração não fosse necessária,
mas enquanto não houver sérios progressos no sentido do desenvolvimento dos
países pobres, há que reconhecer o direito de cada pessoa a encontrar um lugar
onde não só possa satisfazer necessidades básicas, mas também realizar-se
plenamente como pessoa (n. 129). Aqui reside uma resposta a quem invoca o
direito de não emigrar (de se realizar plenamente no seu próprio país, assim se
evitando que dos países pobres fujam os mais jovens e qualificados) para
justificar a recusa do direito a emigrar. São duas facetas de um mesmo direito
ao desenvolvimento, que não se excluem mutuamente, e ambas devem ser tidas em
consideração.
A experiência histórica de Portugal ilustra bem estas
ideias da encíclica Fratelli tutti:
como a nossa cultura se enriqueceu, ao longo da história, com os contactos com
outras culturas e como a emigração contribuiu para o desenvolvimento do país e
dos portugueses. Até agora não se tem notado entre nós o clima de hostilidade
aos estrangeiros e imigrantes que se tem notado noutros países europeus. Será
uma grave perda e um grave retrocesso se assim deixar de ser.
Muitos outros são os temas abordados nesta encíclica que
merecem destaque.
Podemos analisar o que dela podemos retirar como luz
para colher lições da pandemia que nos atinge há mais de um ano e para
enfrentar as suas consequências. Vê-se que a pandemia surgiu precisamente
quando a redação da encíclica estava a decorrer e ela reflete já algumas dessas
lições.
Assim, por exemplo, a redescoberta do valor da vida dos
mais velhos. Não é por a vida se aproximar do seu termo que perde valor («o valor da vida não tem variações». afirmou
o cardeal Tolentino Mendoça a propósito da seletividade dos cuidados de saúde).
Para preservar essa vida, muitos sacrifícios se fizeram e se justificaram.
Os
mais velhos têm sido das principais vítimas daquela “cultura do descarte”
muitas vezes denunciada pelo Papa Francisco. Reafirma ele nesta encíclica (n.
19): «as pessoas já não são vistas como um valor
primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se
“ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos).» E
diz, referindo-se à pandemia (n. 19): «Vimos o que aconteceu com as pessoas de
idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer
assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas
de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta
de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um
acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria
família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é
necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não
pode alcançar».
Na
sequência destas ideias expostas na Fratelli
tutti, parece-me importante destacar o documento da Academia Pontifícia
pela Vida A Velhice. O Nosso Futuro – A
condição dos idosos depois da pandemia
Nele se afirma: «Em qualquer caso,
ser idoso é um dom de Deus e um enorme recurso, uma conquista que deve ser
salvaguardada e cuidada, também quando a doença se torna incapacitante e surgem
necessidades de assistência integrada e de elevada qualidade. E é inegável que
a pandemia reforçou em todos nós a consciência de que a “riqueza dos anos” é um
tesouro a valorizar e proteger». Citando
São João Paulo II, o documento liga o valor da velhice ao sentido do destino
último da existência humana: «É urgente recuperar a perspetiva correta de
consideração da vida no seu conjunto. E a perspetiva correta é a da eternidade,
da qual a vida é uma preparação significativa em cada uma das suas fases.
Também a velhice tem um seu papel a desempenhar neste processo de progressiva
maturação do ser humano a caminho da eternidade. Se a vida é uma peregrinação
em direção ao mistério de Deus, a velhice é o tempo em que mais naturalmente se
olha para o limiar deste mistério. O homem que envelhece não se aproxima do
fim, mas do mistério da eternidade, para o compreender, precisa de se aproximar
de Deus e de viver em relação com Ele.». Compreende-se, assim, melhor porque é que nunca deve dizer-se, de
si ou de outros: «Já não estou cá a fazer nada…»
Este
documento propõe um novo modelo de cuidado e assistência dos idosos mais
frágeis. Sem deixar de reconhecer que tal nem sempre é possível, afirma «o
dever de criar as melhores condições para que os idosos possam viver esta
particular fase da vida, na medida do possível, no ambiente que lhe é familiar,
com as amizades habituais. Quem não gostaria de continuar a viver na sua casa,
rodeado de afetos das pessoas que lhe são queridas, também quando se torna mais
frágil? A família, a casa, o seu ambiente, representam a escolha mais natural
para quem quer que seja.»
Outra importante lição da pandemia
é o da nossa natural interdependência («Estamos todos no mesmo barco e ninguém
se salva sozinho» - as frases do Papa Francisco que tanto eco tiveram). Uma
lição que vem de encontro à mensagem da Fratelli
tutti e se torna particularmente oportuna não apenas no que se refere às
questões sanitárias, mas também à recuperação da crise económica e social
gerada pela pandemia.
Diz o Papa
nesta encíclica (n. 32): «É verdade que uma
tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a
consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o
mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que
só é possível salvar-nos juntos.» Mas diz também (n. 35): «Contudo
rapidamente esquecemos as lições da história, “mestra da vida”. Passada a
crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em
novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam “os outros”,
mas apenas um “nós”. (…) Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos
dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos
e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os
rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.».
A parábola
do Bom Samaritano serve de modelo no modo de enfrentar a crise económica e
social que atravessamos. A este respeito, afirma a Fratelli tutti (n. 53):
«É possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais
concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo, com o mesmo
cuidado que o viandante da Samaria teve por cada chaga do ferido. Procuremos os
outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete, sem temer a dor nem a
impotência, porque naquela está todo o bem que Deus semeou no coração do ser
humano. As dificuldades que parecem enormes são a oportunidade para crescer, e
não a desculpa para a tristeza inerte que favorece a sujeição. Mas não o
façamos sozinhos, individualmente. O samaritano procurou um estalajadeiro que
pudesse cuidar daquele homem, como nós estamos chamados a convidar outros e a
encontrar-nos num “nós” mais forte do que a soma de pequenas individualidades;
lembremo-nos de que “o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a
simples soma delas”»
A missão do Bom Samaritano é a de
cada um de nós, e também a das instituições sociais e políticas (que podem
desempenhar o papel do estalajadeiro). Será adequado evocar o que a encíclica
afirma a respeito da dimensão social e política da caridade (n. 186): «É caridade acompanhar uma pessoa que
sofre, mas é caridade também tudo o que se realiza – mesmo sem ter contacto
direto com essa pessoa – para modificar as condições sociais que provocam o seu
sofrimento. Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade
primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade. É
caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político
cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua
ação política.»
Cada vez se evidencia mais como a crise económica devida
à pandemia da Covid-19 não atinge todos por igual. Para além do grande
incremento das colossais fortunas dos gigantes das tecnologias de comunicação,
alguns factos mais próximos de nós devem ser salientados a este respeito.
Uma explicação para que os impostos sobre os rendimentos
do trabalho não tenham caído como seria de esperar será a de que as quebras
desses rendimentos atingiram sobretudo os mais pobres, os que não pagam
impostos ou que pagam menos. E entre estes conta-se quem não pode recorrer ao
teletrabalho. Entre trabalhadores do setor público, sem quaisquer quebras de
rendimentos, e muitos do setor privado ou pequenos empresários, a diferença
também é notória. Li há tempos uma peça jornalística com conselhos sobre a
aplicação de poupanças que para alguns (sem quebras de rendimentos e com
despesas reduzidas, como as de transportes) trouxe a pandemia. Entretanto, os
sucessivos confinamentos (depois de se ter afirmado que o país não aguentaria a
repetição do primeiro) atingiram invariavelmente as mesmas categorias
profissionais.
Diante desta situação, parece-me de salientar, por um
lado, o que afirmaram os bispos portugueses na sua reflexão intitulada Recomeçar e Reconstruir, sobre a
sociedade a reconstruir depois desta pandemia. Salienta tal documento que a
amplitude da crise originada pela pandemia tem feito redescobrir a importância
do papel do Estado no que diz respeito aos apoios sociais e ao relançamento da
economia, algo que condiz com a doutrina social da Igreja se for também
observado o princípio da subsidiariedade (isto é, que a iniciativa do Estado
não absorva, mas complete, supletivamente, as iniciativas da sociedade civil).
Cabe, pois, ao Estado fazer do combate à pobreza e à desigualdade uma
prioridade que supera muitos outros dos seus objetivos. Tal prioridade não
significa um aumento da dívida pública, que sempre terá de ser paga pelos
vindouros, mas um critério decisivo de seleção de despesas e receitas.
Mas salienta também esse documento, na linha desse
princípio da subsidiariedade: «… convirá não cair na ilusão de que do Estado se
pode esperar a superação da crise sem o contributo da iniciativa e criatividade
da sociedade civil, quer no plano dos apoios sociais, quer do relançamento da
economia. Seria uma forma de desresponsabilização da sociedade civil esperar
passivamente pela intervenção do Estado em todos os domínios.»
Quanto aos apoios sociais imediatos, afirma ainda esse
documento que é exigido um esforço acrescido da sociedade civil que não tem
paralelo na nossa história recente: «Não bastam ajudas esporádicas e
ocasionais, movidas por emoções momentâneas. São necessárias ajudas, em
dinheiro, bens ou trabalho voluntário, que sejam contínuas, consistentes e
impliquem até renúncias significativas.»
Vem-me à mente, a este propósito, uma iniciativa que
surgiu na minha paróquia e que se está a estender a outras paróquias vizinhas:
várias pessoas (são já mais de duas centenas) confecionam regularmente
refeições para distribuir por famílias que delas necessitam e que são
selecionadas pela junta de freguesia com salvaguarda da privacidade destas.
Tenho acompanhado a iniciativa e é comovente ver como cada cozinheira/o
confeciona tais refeições com o mesmo esmero e a mesma qualidade com que o faz
para a sua própria família.
Essas situações de carência não param de aumentar e não
se prevê que diminuam nos tempos mais próximos. Mas é óbvio que não podemos
aceitar que esta situação se prolongue indefinidamente. É que. como afirma o
Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti, ajudas como esta ou subsídios estatais devem ser
sempre «um remédio provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é
o de conseguir uma vida digna através do trabalho, pois o «trabalho é uma
dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas
também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias,
expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável do mundo e,
finalmente, viver como povo» (n. 162).
Na encíclica,
a missão do empresário é enaltecida na medida em que cria oportunidades de
trabalho parra outros (e assim contribui para o destino universal dos bens),
«um modo de desenvolver as capacidades que Deus nos deu e as potencialidades de
que encheu o universo» (n. 123).
É este objetivo, de combate à pobreza e
à desigualdade através da manutenção e criação de empregos (que sejam bem
remunerados, pois, como confirmou um estudo recente, o emprego com baixos
salários não elimina a pobreza), que, nesta fase de pós-pandemia, deverá mobilizar
a todos, Estado e sociedade civil, trabalhadores e empresários, num esforço
acrescido de unidade e conjugação de esforços que, também ele, deverá ser sem
paralelo na história recente.
De entre outros temas abordados na encíclica Fratelli tutti, eu destacaria os
seguintes:
A
propósito do princípio do destino universal dos bens, este é reafirmado na
encíclica também com grande ênfase, como direito natural, primordial e
prioritário, «primeiro princípio de toda a ordem ético-social». Outros
direitos, incluindo o de propriedade privada, estão-lhe subordinados, devem
facilitar a sua realização, não impedi-la (n. 120).
A
respeito do funcionamento da economia, são criticadas as posições que do
mercado esperam a solução de todos os problemas: um pensamento «pobre,
repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer problema que
surja» (n. 168).
Quanto
à dívida dos países mais pobres, afirma a encíclica: «Embora se mantenha o
princípio de que toda a dívida legitimamente contraída deve ser paga, a maneira
de cumprir este dever que muitos países pobres têm para com países ricos não
deve comprometer a sua subsistência e crescimento» (n. 126).
Severa
é a crítica à especulação financeira que condiciona o preço dos alimentos,
tratados como qualquer mercadoria, provocando desse modo a fome de muitas
pessoas, fome que é «criminosa» (n. 189).
Um
relevo especial é dado na encíclica a todas as formas de diálogo. Muitas vezes,
porém, confunde-se o diálogo com monólogos paralelos. «O diálogo social
autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro,
aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos» (n.
203). Na verdade: «De todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil,
ninguém é supérfluo» (n. 215).
Isto
não significa aderir ao relativismo, como se a verdade estivesse sujeita a
consensos ou negociações. Mesmo que se deva reconhecê-la, ou as suas
implicações concretas, através do diálogo, há «verdades que não mudam, que eram
verdade antes de nós e sempre o serão» (n. 208). A ética e a política não podem
assemelhar-se à física, como se não existissem o bem e o mal em si mesmos, mas
apenas cálculos de vantagens e desvantagens (n. 210). Se não fosse assim, se
não houvesse verdades transcendentes, os direitos humanos poderiam ser negados
«pelos poderosos de turno depois de terem obtido o “consenso” de uma população
adormecida e amedrontada» (n. 209).
Muito
distante do verdadeiro diálogo, está um uso frequente de redes sociais marcado
por uma «agressividade despudorada», onde se recorre a expressões e posturas
que outrora envergonhariam qualquer pessoa (n. 44). Os meios digitais também
favorecem o encontro entre pessoas com as mesmas ideias e dificultam o
confronto com quem tem ideias diferentes (n. 45).
À
arte do diálogo está também associada a missão da política, caracterizada como
«sublime vocação, uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem
comum». Salienta-se, assim, como já vimos, a dimensão social e política da
caridade (n. 186). A caridade não se confunde com o sentimentalismo subjetivo,
supõe um compromisso com a verdade (n. 184). E aspira à eficácia, não se fica
pelas boas intenções (n. 185).
Um
destaque particular é dado na encíclica à reconciliação, ao perdão (este também
na sua relação com a justiça) e à paz.
Para
quem, como eu, lida quotidianamente com a justiça criminal, o tema da relação
entre a justiça e o perdão assume uma grande relevância. Tenho refletido e
escrito sobre ele à luz do Evangelho e da doutrina social da Igreja.
Muitas
vezes tenho citado, a este respeito, uma notável mensagem de São João Paulo II,
a sua mensagem para Dia Mundial da Paz de 1 de janeiro de 2002 Não há Paz
sem Justiça, não há Justiça sem Perdão. Nela se afirma:
«Muitas
vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao
pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A
convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é
que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente
justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma
particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto
da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de
direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas,
como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às
limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa
maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em
profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões
entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e
mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque
não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada,
mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da
ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das
hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram
nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)».
Por
outro lado, o perdão não tem uma dimensão puramente individual, moral ou
religiosa, tem também uma dimensão social: «Como ato humano, o perdão é, antes
de mais, uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus
semelhantes. Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite
estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente
não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário
também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria
comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os
laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a
tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A
capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade mais justa e
solidária.» (n.9).
O
que nos diz agora, a este respeito, a Fratelli
tutti?
Diz-nos
que «a verdade, a misericórdia e justiça são essenciais para construir a paz e
cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (n. 227).
Há que evitar quer o fatalismo e a inércia perante a
injustiça, quer a violência e a intolerância (n. 237)
Quando
Jesus afirma que não veio «trazer a paz, mas a espada» (Mt 10. 34-36), não
convida a provocar conflitos, mas a suportar o conflito inevitável, para que o
respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz
familiar ou social (n. 240). A verdadeira reconciliação não escapa do conflito,
mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo e de
negociações transparentes, sinceras e pacientes (n. 244). Repetindo a máxima
que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma que «a unidade é superior ao
conflito», o que não significa ignorar o conflito, mas resolvê-lo «num plano
superior que preserva as preciosas potencialidades das polaridades em
contraste» (n. 245).
Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal
não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é
aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir,
tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a
justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por
Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as (n. 241).
Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça
procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das
vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a
suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite
buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem da injustiça do
esquecimento» (n. 252). A esta luz deve ser encarado o que depois se afirma a
propósito da pena de morte e da pena de prisão perpétua.
De resto, a
vingança «nunca sacia verdadeiramente a insatisfação da vítima» (n. 251).
O
perdão não é algo que possa ser imposto às vítimas. Na esfera pessoal, alguém
pode renunciar a exigir um castigo, mesmo que a sociedade e a justiça o busquem
legitimamente. Mas ninguém pode arrogar-se o direito de perdoar em nome dos
outros. «É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que souberam
ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o
podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento» (n.
246).
Mas o perdão é sempre possível. «Mesmo que haja algo que
jamais pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar»
(n. 250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste
ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).
A respeito da guerra, é forte na encíclica a expressão
do seu repúdio como meio de resolução de conflitos. Relembra-se as condições
muito estritas da sua legitimidade como último recurso de defesa, tal como vêm
enunciados no Catecismo da Igreja
Católica. Alerta para a tendência que se verifica sempre de tentar
encontrar justificações para qualquer guerra, e também de alargar
injustificadamente o âmbito da legítima defesa (exemplificando com a noção de
“guerra preventiva”).
As teses mais antigas sobre a “guerra justa”, que não a limitam a situações de
estrita defesa, estão hoje superadas, perante os danos que qualquer guerra hoje
(mais do que no passado) acarreta, sempre superiores aos que com ela se
pretende evitar, condição que sempre foi colocada para a sua legitimidade (n.
258).
Afirma também a encíclica que a verdadeira paz não pode
assentar na dissuasão, no medo e nas ameaças de destruição mútua, que só criam
uma falsa segurança e a desconfiança mútua. Por isso, na linha do que já de
outras vezes afirmou, o Papa apela à eliminação total da simples posse de armas
nucleares. Essa eliminação é não só um desafio, mas «um imperativo moral e
humanitário». Exige uma resposta «coletiva e planeada, baseada na confiança
recíproca» (n. 262).
Reafirma também a encíclica a oposição à pena de morte,
qualificada como «inadmissível» (n. 263). Ao contrário do que com frequência se
salienta no sentido da descontinuidade do magistério do Papa Francisco neste
campo com a doutrina anterior, aqui é salientada a continuidade com o
magistério de São João Paulo II (que também inovou e de que não será possível
recuar) e são também citadas manifestações de oposição à pena de morte desde os
primeiros tempos da Igreja (n.s 263 e 265).
O cerne da oposição à pena de morte reside, porém, na
distinção entre o crime e a dignidade pessoal do criminoso, que nunca se perde,
nem num autor do crime mais grave, nem em qualquer outra pessoa. Citando São
João Paulo II, afirma Francisco: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade
pessoal e o próprio Deus se constitui seu garante». E continua: «A rejeição
firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade
inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo.
Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a
todos a possibilidade de compartilhar comigo este Planeta, apesar do que nos
possa separar» (n. 269).
Também a pena de prisão perpétua é condenada como «pena
de morte escondida» (n. 268). Noutras ocasiões, o Papa Francisco já havia
afirmado que esta pena «mata a esperança».
Ao longo de toda
a encíclica, são frequentes as referências ao Documento
sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado pelo Papa Francisco e pela
máxima autoridade do Islão sunita, o Grande Imã da universidade Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019. O
Papa afirma que foi especialmente estimulado por esse documento e que nesta
encíclica aprofunda e desenvolve muitos dos temas nele abordados (n. 5). Os
apelos desse documento são reproduzidos no final da encíclica (n. 285).
Assim,
a fraternidade universal é associada ao diálogo e amizade entre fiéis de
diferentes religiões. Reafirma-se o que nesse documento se diz a respeito da
rejeição da violência e do terrorismo: «A violência não encontra fundamento
algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações» (n.
282). E, também, citando diretamente a Declaração de Abu Dhabi: a violência em
nome da religião é «fruto de desvio dos ensinamentos
religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos
de homens de religião que abusaram – em algumas fases da história – da
influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens» (285).
Foi
isto mesmo que afirmaram Ahmad Al-Tayeb e outros dirigentes muçulmanos que
condenaram com veemência o atentado terrorista na Catedral de Nice.
A
crença em Deus não pode conduzir à violência. É assim, desde logo, porque
«aquele que não ama não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor» - 1 Jo 4.8
(n. 283).
Salienta-se o valor da liberdade
religiosa, que deve ser garantida a todos, onde os cristãos são minoria e onde
são maioria (n. 279).
A
declaração de Abu Dhabi e importância do diálogo inter-religioso na promoção da
paz e da fraternidade universal veio em grande evidência na recente visita do
Papa Francisco ao Iraque.
Eis,
assim, muitos dos aspetos abordados nesta encíclica. Ainda muitos mais poderiam
ser salientados. Para os católicos, trata-se de um documento a estudar com
afinco e a viver com coerência. Mas muitas outras pessoas, cristãos de outras
denominações, fiéis de outras religiões e todos os que aderem a ideais de
fraternidade, podem dela colher, de uma ou de outra forma, inspiração.
Vila Real (Cascais – à distância), 28 de maio de 2021
Pedro Vaz Patto
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz