Um
Pai Criador
Das vezes em que tive
ocasião de abordar a encíclica Laudato Si`,
do Papa Francisco, pareceu-me que o mais importante a salientar era o que
ela tinha de específico em relação ao pensamento ecologista corrente (a sua
“mais valia”, o seu “algo mais”). E que era também o que permitia identificar a
motivação mais profunda do cuidado dos cristãos para com o ambiente. O Papa
Francisco, como já os Papas anteriores (São João Paulo II e Bento XVI), não se
limitam a juntar-se ao coro da cultura ecologista dominante, nem aderem
indistintamente a todos os aspetos dessa cultura. O magistério da Igreja e a
ação dos cristãos enquanto tal têm a dar um contributo característico e
insubstituível no debate e ação relativos ao cuidado do ambiente.
Esse contributo reside
essencialmente no “Evangelho da Criação”, título do capítulo II da Laudato Si`.
A
teologia da criação leva-nos a respeitar esta como precioso dom de Deus. O ser
humano é criatura, não se cria a si próprio. É uma criatura dotada de sublime
dignidade, mas não deve substituir-se ao Criador, deve, antes, com Ele
colaborar, completando a sua obra, sem a destruir. Estas ideias são
desenvolvidas com profundidade e beleza em vários pontos da encíclica.
Sobre a criação como dom e reflexo de Deus:
«
(…) São Francisco, fiel à Sagrada
Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus
nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade» (n. 12)
«Na tradição judaico-cristã, dizer “criação”
é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus,
onde cada criatura tem um valor e um significado. A natureza entende-se
habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação
só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como
uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal.»
(n. 75).
«Não podemos defender uma espiritualidade que
esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros
poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão
de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de
colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador
absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do
mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade
as suas próprias leis e interesses.» (n. 75). Esta frase merece destaque,
para compreender o sentido mais profundo do pensamento do Papa sobre a proteção
do ambiente, que nem sempre tem sido sublinhado: «A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a
sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de
um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá
sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses».
Afirma
sobre esta questão, comentando a encíclica, o filósofo francês Fabrice Hadjad
(que esteve este entre nós o ano passado): «reconhecer
que a natureza não é um amontoado de energia e materiais disponível, mas uma
certa ordem a respeitar, acompanhar e prolongar, supõe a providência de um
Criador generoso» (www.famillechrétienne.fr, 22/6/2015). Eis-nos perante a
clássica prova da existência de Deus através da ordem e harmonia da natureza
(que não é fruto do acaso caótico).
E
ver a natureza como dom de Deus, reflexo da sua sabedoria, da sua beleza e da
sua glória, leva a respeitar a harmonia, a ordem, o equilíbrio, a “gramática”,
as leis que Ele nela inscreveu.
Já
o havia dito Bento XVI na encíclica Caritas
in Veritate (n. 48):
«O tema do desenvolvimento aparece, hoje,
estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente
natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma
responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a
humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada
como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida
responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece
o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode
responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências —
materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria
criação. Se falta esta perspetiva, o homem acaba por considerar a natureza um
tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas
atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus.
A
natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos,
tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf. Rm 1,
20) e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no fim dos tempos, a ser
“instaurada” em Cristo (cf. Ef 1, 9-10; Col 1,
19-20). Por conseguinte, também ela é uma “vocação”. A natureza está à nossa
disposição, não como “um monte de lixo espalhado ao acaso”, mas como um dom do
Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há de
tirar as devidas orientações para a “guardar e cultivar” (Gn 2,
15).
O lugar da pessoa humana na criação.
A
visão bíblica da criação ilumina e esclarece o papel da pessoa humana em
relação à natureza.
Essa
visão confere ao ser humano (homem e mulher) uma dignidade incomparável, porque
criado à imagem e semelhança de Deus. Segundo a constituição dogmática do
concílio Vaticano II Gaudium et Spes,
«tudo o que existe na terra deve ser
ordenado para o homem, como seu centro e vértice» (n. 12), «a única criatura que Deus quis por si mesma»
(n. 24)..
Sobre
esta dignidade, diz a Laudato Si:
«(…)
Na primeira narração da obra criadora, no
livro do Génesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da
criação do homem e da mulher, diz-se que “Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1, 31). A
Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e
semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta
afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que “não é
somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente
se dar e entrar em comunhão com outras pessoas”. São João
Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador
tem por cada ser humano “confere-lhe uma dignidade infinita”. Todos aqueles que
estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé
cristã, as razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a
certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num
mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O
Criador pode dizer a cada um de nós: “Antes de te haver formado no ventre
materno, Eu já te conhecia” (Jr 1, 5). Fomos concebidos no
coração de Deus e, por isso, “cada um de nós é o fruto de um pensamento de
Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário”
» (n. 65)
É, porém, célebre a acusação, pelo
historiador Lynn White Jr. no artigo The
historical roots of our ecological crisis (Science, 10/3/1967), desta visão antropocêntrica da Bíblia como
raiz da atual crise ecológica.
Mas a teologia da criação também nos leva a compreender que o
ser humano não deve substituir-se ao Criador, nem tratar a natureza como objeto
do seu domínio absoluto. É criatura, não se cria a si próprio. É uma criatura
dotada de sublime dignidade, mas não deve substituir-se ao Criador, deve,
antes, com Ele colaborar, completando a sua obra, sem a destruir. A especial
dignidade da espécie humana é um privilégio, mas também uma responsabilidade. A
encíclica Laudato Si` denuncia,
antes, o “antropocentrismo moderno”
ou “antropocentrismo desordenado”
como uma das raízes (juntamente com o “paradigma
tecnocrático” e o “relativismo
prático”) da crise ecológica.
«Não somos Deus. A terra existe antes de nós
e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o
pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a
“dominar” a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a
exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como
dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia,
como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes
interpretámos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente
rejeitar que, do facto de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar
a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante
ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar
que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,
15). Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, “guardar”
significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de
reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode
tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas
tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade
para as gerações futuras. Em última análise, “ao Senhor pertence a terra” (Sl 24/23,
1), a Ele pertence “a terra e tudo o que nela existe” (Dt 10, 14). (…)»
(n. 67)
Já
havia dito algo de semelhante São João Paulo II na encíclica Centesimus Annus (n. 37):
«Na raiz da destruição insensata do ambiente natural,
há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem,
que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo
com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da
doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor
arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela
não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o
homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu
papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e
deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que
governada por ele».
A
visão bíblica da criação distingue-se, pois, do antropocentrismo moderno. Mas
também se distingue do chamado ecocentrismo[1],
ou das correntes da deep ecology (ecologia
profunda). A criação não é Deus (como seria próprio de uma visão panteísta, do
pensamento mítico pré-cristão, ou de correntes pós-cristãs de tendência New Age), não é, pois, intocável ou
perfeita em si mesma. Por isso, o respeito pela natureza não é incompatível com
o progresso científico e tecnológico, nem com o crescimento demográfico.
Afirma
o bispo francês de Fréjus-Toulon, Dominique Rey: «É impossível conceber uma ecologia autêntica que não seja centrada
sobre o homem, e não apenas sobre a terra. A proteção da natureza passa pela
proteção do homem. (…) Não pode considera-se nunca a natureza mais importante
do que a pessoa humana»[2]
E
O Papa emérito Bento XVI, na encíclica Caritas
in Veritate (n. 48):
«Mas é preciso sublinhar também que é
contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a natureza mais importante
do que a própria pessoa humana. Esta posição induz a comportamentos neopagãos
ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendida em sentido puramente
naturalista, não pode derivar a salvação para o homem. Por outro lado, há que
rejeitar também a posição oposta, que visa a sua completa tecnicização, porque
o ambiente natural não é apenas matéria de que dispor a nosso bel-prazer, mas
obra admirável do Criador, contendo nela uma “gramática” que indica finalidades
e critérios para uma utilização sapiente, não instrumental nem arbitrária.»
O ambiente em função da pessoa humana
O cuidado do ambiente deve ser
concebido em função do cuidado para com a pessoa humana, e não o contrário.
Mas em que sentido devemos entender
este princípio?
É
dimensão constitutiva da pessoa humana a sua relacionalidade. A pessoa não é um
átomo isolado, realiza-se como pessoa no relacionamento com outras pessoas. O
outro não é um potencial inimigo ou concorrente que limita a minha liberdade,
mas um irmão ou irmã sem o qual não chegam a desabrochar as minhas melhores
potencialidades.
Ora,
esta relacionalidade constitutiva da pessoa tem uma dimensão sincrónica (a que
diz respeito às outras pessoas e à comunidade contemporâneas) e uma dimensão
diacrónica (a que diz respeito à cadeia de gerações em que me integro).
Realizo-me como pessoa no relacionamento com outras pessoas minhas
contemporâneas, mas também noutro tipo de relacionamento com as gerações que me
precederam e com as que me hão de suceder. Das gerações que me precederam
recebo, como dom insubstituível, um legado que me esforçarei por transmitir,
enriquecido, às gerações futuras. Esse legado comporta, mais ainda do que o
património material, o património cultural e o património ambiental.
Todos
podemos verificar exemplos de natural e espontânea generosidade (que chegam ao
sacrifício heroico) em relação aos filhos e ao seu futuro, mas também mais
genericamente em relação à geração seguinte. E também podemos ter
comportamentos censuravelmente egoístas não apenas para com pessoas nossas
contemporâneas, mas também com as que nos sucederão no futuro.
O
filósofo Hans Jonas sublinhou esta exigência de alargar o campo da ética para
além do imediato e da contemporaneidade. O imperativo ético será: «age de tal maneira que os efeitos da tua
ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra»[3].
Nesta
perspetiva, o “próximo” a amar, ou com quem estabelecer relações de
fraternidade, não é apenas a pessoa que conheço, ou que está perto de mim
fisicamente. E não é sequer apenas o meu contemporâneo, porque as gerações
futuras também beneficiarão das consequências positivas da minha ação, tal como
sofrerão com as consequências negativas dessa ação.
Quando
se salienta que a proteção do ambiente tem uma dimensão antropocêntrica e
pessoal, importa, porém, considerar o seguinte. Que a proteção do ambiente se
conceba em função de interesses que são, em última análise, interesses da
humanidade (o ambiente para a pessoa humana e a humanidade, e não a pessoa
humana e a humanidade para o ambiente) não significa que a fruição do ambiente
pelos seres humanos deva entender-se em sentido utilitarista, economicista,
consumista ou predatório. A fruição da natureza pelo ser humano tem outro
alcance.
São
João Paulo II exprimiu isso na encíclica Centesimus
Annus (n. 37) quando, ao condenar a atitude humana de agressão ao ambiente,
afirmou:
«Nota-se aqui, antes de mais, uma pobreza ou
mesquinhez da visão humana, mais animada pelo desejo de possuir as coisas do
que relacioná-las com a verdade, privado do comportamento desinteressado,
gratuito, estético que brota do assombro diante do ser e da beleza, que leva a
ler, nas coisas visíveis, a mensagem do Deus invisível que as criou».
Na
encíclica Laudato Si´ (n.11), o Papa
Francisco reforça esta ideia com vigor:
«Se
nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a
admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da
beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do
dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais,
incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos
sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo
espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São
Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais
radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio.»
Só essa
noção de fruição espiritual e estética da natureza permite conceber a proteção
de espécies de flora e fauna contra interesses económicos dos seus
proprietários, ou contra interesses económicos em geral, ou do bem-estar dos
animais contra comportamentos dos seus próprios proprietários (que não os
podem, assim, tratar como se tratam as outras coisas objeto de propriedade),
tal como a proteção da biodiversidade como um bem em si mesmo. Continuam a
estar em causa interesses humanos, encarados num perspetiva mais ampla.
Deve
conceber-se a relacionalidade que é constitutiva da pessoa como relacionalidade
com Deus, com as outras pessoas e com as outras criaturas (sem confundir ou
igualar estes três planos).
A
encíclica Laudato Si` aborda a ligação entre o mistério da Trindade e a relação entre as
criaturas, pondo em relevo a marca trinitária presente na criação
«Para os cristãos, acreditar num Deus único
que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si
mesma uma marca propriamente trinitária. (…)» (n. 239).
«As Pessoas divinas são relações
subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de
relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender,
por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos
encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se
entrelaçam. Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem
entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa própria
realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto
mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com
Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria
existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua
criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma
espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.»
(n. 240)
Disse
um dia o teólogo Karl Rahner que os cristãos ainda não tinham descoberto as
implicações da fé na Trindade nas suas vidas. Esta encíclica ajuda-nos a
superar essa gravíssima lacuna e a encarar a Trindade como modelo social (a
partir da família), que conjuga a unidade e a pluralidade, a comunhão e a
distinção
Ambiente e demografia
A visão cristã da proteção do ambiente não conduz, pois, a
um anti-humanismo, ao contrário de certas correntes, que associam a proteção do
ambiente à redução da população, mesmo através de medidas coercivas ou através
do aborto. Como se a espécie humana fosse inimiga da natureza e devesse ser
reduzida para proteger esta. Mas a pessoa humana é sempre a maior das riquezas,
vale mais do que a própria natureza.
Já
o havia dito o Papa Paulo VI no seu discurso na O.N.U., em 4 de outubro de
1965:
«A vossa
tarefa é agir de modo que o pão seja abundante à mesa da humanidade, e não
favorecer um “controle” artificial dos nascimentos, que seria irracional, com a
finalidade de diminuir o número dos convivas ao banquete da vida.»
Sobre
esta questão afirma a Laudato Si` (n.
50):
«Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo
diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam
pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que
condicionam as ajudas económicas a determinadas políticas de “saúde
reprodutiva”. Mas, “se é verdade que a desigual distribuição da população e dos
recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do
ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente
compatível com um desenvolvimento integral e solidário”. Culpar o incremento demográfico em vez
do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os
problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo atual, no qual
uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria
impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos
de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço
dos alimentos produzidos, e “a comida que se desperdiça é como se fosse roubada
da mesa do pobre”.»
Ou seja: a redução demográfica
imposta aos países pobres é uma boa maneira de evitar a necessária redução do
consumo dos países ricos. A dívida
ecológica onera os países ricos (que mais produzem e consomem e, por isso,
mais poluem), e não os países pobres (pelo simples facto de a sua população ser
maior)[4].
È de salientar que a Conferência de
Paris sobre alterações climáticas não enveredou por este caminho, de associar o
combate a essas alterações à redução demográfica[5]
Ciência, tecnologia, progresso
Houve quem falasse, a propósito da encíclica Laudato Si`, «no regresso da
Igreja ao “anti-modernismo». Em contraste com o geral aplauso de vastos
setores da opinião pública, mesmo os aparentemente mais afastados da Igreja Católica,
uma declaração subscrita por oito conceituados cientistas e filósofos italianos
criticou o modo negativo como nela pretensamente se encara a ciência e a
tecnologia[6].
Mas
a encíclica não condena a ciência e a tecnologia, que qualifica como «um produto estupendo da criatividade humana
que Deus nos deu», «remédio a
inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano» (n. 102). Condena
aquilo a que chama “paradigma tecnocrático”, a pretensão de, já não intervir na
natureza acompanhando as possibilidades por esta oferecidas, mas de «extrair o máximo possível das coisas por
imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do
que tem à sua frente» (n. 106).
E
não condena o progresso, propõe um novo modelo, baseado mais no ser do que no ter. «Trata-se de abrir
caminho a oportunidades diferentes, que não implicam frenar a criatividade humana
nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais»
(n. 196).
Já afirmava o Compêndio
da Doutrina Social da Igreja (n. 473):
« A visão cristã da criação comporta um juízo positivo sobre a
liceidade das intervenções do homem na natureza, inclusive os outros seres
vivos, e, ao mesmo tempo, uma forte chamada ao senso de responsabilidade. De fato, a natureza não é
uma realidade sacra ou divina, subtraída à ação humana. É, antes, um dom
oferecido pelo Criador à comunidade humana, confiado à inteligência e à
responsabilidade moral do homem. Por isso ele não comete um ato ilícito quando,
respeitando a ordem, a beleza e a utilidade de cada ser vivente e da sua função
no ecossistema, intervém modificando-lhe algumas características e propriedades»
O estatuto ético e jurídico dos
animais não humanos
A
questão do estatuto ético e jurídico dos animais não humanos está na ordem do
dia.
A Lei n.º 8/2017, de 3 de março, veio consagrar o
estatuto jurídico dos animais, que deixaram de ser qualificados como “coisas”,
passando a ser considerados como um tertium
genus, entre “pessoas” (sujeitos de direitos) e “coisas”. De acordo com a
nova versão do artigo 201º-B do Código Civil, os animais são «seres vivos dotados de sensibilidade e
objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza». Não deixam, porém,
de ser objeto de direitos, designadamente o de propriedade (uma propriedade que
não está, porém, funcionalizada pelos interesses do proprietário nos mesmos
termos em que o está a propriedade das coisas). E a eles continua a aplicar-se,
subsidiariamente, o regime jurídico das coisas.
Outra alteração legislativa significativa a este
respeito foi a da criminalização dos maus tratos a animais de companhia e do
abandono de animais de companhia (artigos 387.º e 388.º do Código Penal),
operada pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto. O proprietário do animal de
companhia em causa pode ser agente desses crimes; apesar de ser proprietário,
não pode tratar o animal como quer e como trata uma coisa objeto da sua
propriedade. Pode, mesmo assim, infligir dor ou sofrimento ao animal de
companhia se para tal tiver motivo legítimo. Excluem-se do regime desta
incriminação os factos relacionados com a utilização de animais para fins de
exploração agrícola, pecuária ou agro-industrial, ou de espetáculos comerciais
(artigo 389.º, n.º 2).
Podemos dizer, de qualquer modo,
que estas alterações legislativas se situam ainda no âmbito da “doutrina da proteção
do bem-estar animal”. De acordo com esta doutrina, os animais não humanos
merecem proteção, enquanto seres sencientes, sem que lhes seja reconhecida a
qualidade de sujeitos de direitos. Para esta doutrina, o sofrimento animal deve
ser, como regra, evitado e minimizado, mas pode ser lícito quando estão em
causa interesses humanos de saúde, económicos e culturais, podendo discutir-se
quais desses interesses prevalecem, ou não, sobre os do bem-estar animal[7].
Mais longe vai quem pretende atribuir esse estatuto
de sujeito de direitos aos animais num plano de algum modo equiparável ao do
das pessoas (todos iguais, todos animais).
Para esta corrente, o sofrimento animal deve ser rejeitado nos mesmos termos em
que o é o sofrimento humano.
Pretende-se, pois, de acordo com
essa corrente, que também aos animais não humanos deva atribuir-se a dignidade
de fim em si mesmo, e não simples meio (o que distingue a pessoa das
coisas, na visão de Kant). Há quem atribua dignidade à espécie animal como tal,
mesmo que não a cada indivíduo (como sucede com a pessoa humana).
Daí que, segundo estas correntes,
os animais não possam ser objeto de direitos (designadamente o de propriedade),
mas sujeitos. Contesta-se que sejam objeto de compra e venda e advoga-se para
eles um regime equiparável ao da adoção de menores e da representação de
incapazes quanto ao exercício de direitos.
Situam-se aqui as teses antiespecistas, para as quais não se
justifica alguma superioridade moral, e algum tratamento mais favorável, da
espécie humana em relação a outras espécies animais. O especismo seria, assim, equiparável ao racismo ou ao sexismo.
É conhecida a tese de Peter Singer
segundo a qual são mais dignos de proteção animais não humanos com capacidades
cognitivas superiores às de um feto, um recém- nascido, um doente comatoso, ou
um deficiente profundo membros da espécie humana. A ausência dessas capacidades
no recém-nascido justificaria o infanticídio em caso de deficiência, nos mesmos
termos em que se justificará o aborto.
É nesta corrente que se insere o
movimento internacional Great Ape Project,
que luta pelo reconhecimento (como primeiro passo de reconhecimento dos
direitos dos animais), de direitos fundamentais dos grandes primatas: o direito
à vida, à liberdade e a proibição da tortura.
Penso que continua a ter sentido
rejeitar a noção de “direitos dos animais” (como das plantas ou das montanhas),
porque o direito supõe atributos de liberdade e responsabilidade que são
prerrogativa exclusiva dos seres humanos. O direito supõe a liberdade de o seu
titular (ainda que por interposta pessoa, quando há incapacidade) o exercer ou
não. E não há direitos sem deveres e sem responsabilidades. Considerar que os
animais têm um direito como o direito à vida que fosse oponível aos seres humanos
implicaria o absurdo de considerar que os animais têm o dever de respeitar a
vida dos seres humanos, e também o de respeitar a vida dos outros animais (que
eles continuamente desrespeitam sem ninguém os responsabilizar por isso).
Deve, então, falar-se em normas de
proteção dos animais, e não tanto em “direitos dos animais”.
Mas já me parece errado conceber
essas normas sempre em função do interesse instrumental ou utilitário que os
animais possam ter para com os humanos.
A mensagem bíblica conduz-nos à
exigência de respeito pela integridade da criação, a qual, na expressão de
Bento XVI, «exprime um desígnio de amor e
verdade». Pode, assim, justificar-se a proteção de uma espécie animal em
extinção, independentemente do interesse económico que ela possa representar. E
justifica-se um especial respeito para com os seres sencientes, capazes de
sentir a dor, mesmo que esta sensação de dor não seja inteiramente equiparável
à que experimentam os seres humanos.
Por este motivo, compreende-se que os animais não
sejam equiparados às coisas como algo que está à arbitrária disposição do seu
proprietário, que as pode tratar e destruir como entender.
Mas é também a mensagem bíblica que
nos conduz a distinguir o estatuto ontológico e ético da pessoa humana do dos outros
animais. Esta foi criada “à imagem e
semelhança de Deus” e é destinada a partilhar a vida de Deus.
De um ponto de vista apenas racional (abstraindo da
revelação bíblica), só as pessoas humanas são agentes morais, ou seja, podem
distinguir o bem do mal e livremente fazer opções em função dessa distinção (só
elas podem refletir a respeito do estatuto ético dos outros animais, por
exemplo). Daqui lhes advém um estatuto de dignidade sem paralelo. Não podem
nunca (como podem os animais em determinadas condições) ser tratadas como meio
em relação a um fim que lhes é alheio, devem ser sempre tratadas como fim em si
mesmas. Essa dignidade é, em relação aos outros seres, um privilégio e uma
responsabilidade. É sobre essa dignidade que assenta todo o edifício dos
direitos humanos fundamentais e toda a ordem jurídica que deles decorre.
Por isso, os animais podem ser instrumentalizados em
função de interesses humanos legítimos e de maior relevo ético. É moralmente
aceitável fazer dos animais um instrumento ao serviço de necessidades humanas
como a alimentação[8]
ou a investigação científica tendente à cura de doenças. Já não o será quando
estão em causa interesses de simples divertimento, puramente sumptuários, ou a
maximização do lucro (para além do legítimo sustento económico), em razão do
qual não pode a criação intensiva dos animais sacrificar o bem-estar destes. É
discutível se a preservação de uma arte tradicional, como a tauromáquica, que
se considera parte de um património cultural, pode justificar o sacrifício
desse bem-estar.
À luz deste princípio deve ser encarada a questão da
proibição (em nome do bem-estar desses animais) do abate ritual de animais de
acordo com as normas da religião hebraica ou da religião islâmica, questão que
tem suscitado controvérsia em vários países europeus. As normas da União
Europeia salvaguardam o respeito por tais normas rituais, mas não afastam a
possibilidade de as legislações nacionais proibirem esse abate com esse
fundamento. Entre nós, o artigo 26.º da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n,º
16/2001, de 22 de junho) estatui que ao abate ritual de animais deve respeitar
o bem-estar animal. Na Dinamarca, um ministro afirmou claramente, para
justificar essa proibição, que a proteção dos animais prevalece sobre a
liberdade religiosa[9],
o que me parece pouco conforme à relevância desta liberdade. Não sendo possível
(segundo uma regra de ajustamentos recíprocos), conciliar os dois valores em
jogo, a liberdade religiosa assume uma relevância superior à do bem-estar
animal.
Quanto à polémica tese de Peter
Singer, segundo a qual são mais dignos de proteção animais não humanos com
capacidades cognitivas superiores às de um feto, um recém- nascido, um doente
comatoso, ou um deficiente profundo membros da espécie humana, sendo que a
ausência dessas capacidades no recém-nascido justificaria o infanticídio em
caso de deficiência, há que considerar o seguinte.
Por exigências do princípio da igualdade e não
discriminação, a dignidade humana não depende da capacidade efetiva de
exercício das faculdades racionais que distinguem os seres humanos, Pelo
contrário, é quando, por razões de idade ou doença (de particular
vulnerabilidade, portanto), essas faculdades ainda não são efetivas, ou
deixaram de o ser, que mais se justifica a proteção da ordem jurídica.
O que importa, a este respeito, ter bem presente é
que a dignidade da pessoa deriva do simples facto de ela ser membro da espécie humana, não
de qualquer atributo ou capacidade que possa variar em grau ou que possa ser
adquirido ou perder-se nalguma fase da existência. Depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer. A dignidade da
pessoa é sempre a mesma, não varia em grau conforme maiores ou menores
capacidades cognitivas, não é maior nas pessoas mais inteligentes ou menor nas
menos inteligentes. Não depende da raça, do sexo ou da idade; dela nenhum ser
humano está excluído. Não se vai adquirindo progressivamente até à idade
adulta, existe na sua plenitude desde o início da vida. Não deixa de existir
pela deficiência ou pela doença, físicas ou mentais, por muito profundas que
elas sejam. Não se perde com a idade avançada, a demência, ou o estado comatoso.
A proteção decorrente do reconhecimento de direitos humanos justifica-se ainda
mais, precisamente, quanto aos seres humanos que são mais vulneráveis, por si
mesmos ou pela fase da existência por que passam (o embrião, o feto, o
recém-nascido, o deficiente profundo, o demente, o doente em fase terminal, o
comatoso). Não é por terem capacidades cognitivas inferiores à de animais não
humanos que esses seres humanos mais vulneráveis perdem dignidade em relação a
estes.
Importa ter presente que todo o edifício dos
direitos humanos fundamentais que serve de alicerce primordial da nossa ordem
jurídica assenta no princípio de que a espécie humana e cada pessoa humana (não
qualquer espécie animal, nem qualquer ser vivo) têm uma dignidade ímpar. Por
isso são designados direitos humanos.
O que nos diz, a
este respeito, a encíclica Laudato Si`?
Já vimos como
ela reafirma a dignidade específica da espécie humana e da pessoa humana. Mas
não equipara em dignidade as várias espécies animais, como pretendem as correntes que, como Peter
Singer, criticam o chamado “especismo”,
inspiradas pelo mote “todos iguais, todos
animais”, e que chegam a afirmar ter mais valor um mamífero adulto de outra
espécie do que um ser humano na fase embrionária ou recém-nascido.
A encíclica reconhece (n. 130), citando o Catecismo da Igreja Católica, a
legitimidade da experimentação com animais quando está em causa a possibilidade
de salvar vidas humanas através da medicina[10]. O que
significa que os animais não humanos podem ser instrumentos ao serviço de fins
humanos (o que nunca pode verificar-se em relação às pessoas) Como podem servir
de alimento; o vegetarianismo não é um imperativo ético.
Mas o lugar do ser humano como vértice da criação não
conduz, porém, a desvalorizar outros seres vivos como simples instrumentos ao
serviço da utilidade humana. A encíclica reconhece o valor intrínseco destes,
isto é, que eles têm valor para além da utilidade que possam ter para com o ser
humano (contra a visão jurídica tradicional, que os encara como coisas sujeitas
ao domínio ilimitado do seu proprietário). Portanto, nem todo o uso humano de
outras espécies animais é lícito[11], nem
são lícitos os maus tratos a animais. O que se compreende também à luz da
teologia da criação.
Afirma a encíclica:
«Ao mesmo tempo
que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer
que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, “pelo simples
facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória”, porque “o Senhor Se
alegra em suas obras” (Sl 104/103, 31). Precisamente pela
sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a
respeitar a criação com as suas leis internas, já que “o Senhor fundou a terra
com sabedoria” (Pr 3, 19). Hoje, a Igreja não diz,
de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao
bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível
dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha –
que, nas outras criaturas, “se poderia falar da prioridade do ser sobre
o ser úteis”. O Catecismo põe em questão, de forma muito
direta e insistente, um antropocentrismo desordenado: “Cada criatura possui a
sua bondade e perfeição próprias. (...) As diferentes criaturas, queridas pelo
seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da
bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade
própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas”». (n. 69)
«O facto de insistir na afirmação de que o
ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura
tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem
do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as
montanhas: tudo é carícia de Deus.» (n. 84)
A
encíclica denuncia a incoerência de quem pretende proteger outras espécies e
não o faz com tanto vigor quando está em causa a espécie humana, incluindo na
sua fase embrionária (n. 90, n. 91 e n. 120). Mas não contrapõe a proteção do
ser humano e a proteção de outras espécies animais:
«(…) quando o
coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém
fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença
ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma
forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos.
O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda
a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra
qualquer criatura “é contrário à dignidade humana” (…).»
(n. 92).
Vale aqui o
que acima disse a respeito da fruição estética e espiritual do ambiente, e da
relacionalidade constitutiva da pessoa estendida às outras criaturas. Ou o que
afirmou o Pe. Raniero Cantalamessa, baseando-se no testemunho de São Francisco
de Assis: «a criação foi feita para ser contemplada, e não possuída»[12].
A ecologia humana
Talvez o ponto onde se nota o
maior contraste entre o magistério da Igreja católica e o pensamento ecologista
dominante seja o da chamada ecologia
humana.
A esta
noção se referiu, pela primeira vez, São João Paulo II, que afirmou, na encíclica
Centesimus Annus:
«Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui
outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda
longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos,
apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o “habitat” natural das
diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da
particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra,
empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar
as condições morais de uma autêntica “ecologia humana”. Não só a terra foi dada por
Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem,
segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus,
devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado.»
(n. 38)
«A primeira e fundamental
estrutura a favor da “ecologia humana” é a família, no seio da qual o homem
recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende
o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em
concreto, ser uma pessoa. Pensa-se aqui na família fundada sobre o matrimónio, onde a doação recíproca de si
mesmo, por parte do homem e da mulher, cria um ambiente vital onde a criança
pode nascer e desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua
dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino» (n.
39).
O Papa
emérito, Bento XVI, por seu turno, afirmou na encíclica Caritas in Veritate (n. 51): « (…) O
livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como
sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das
relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral. (…)» E denunciou a “ideologia do género”, que nega algum desígnio natural no âmbito da
sexualidade (é hoje autêntico tabu
falar em “lei natural” a respeito de
sexualidade) como contrária à “ecologia
humana” assim entendida, apontando a incoerência da valorização da ecologia
ambiental em simultâneo com a desvalorização dessa “ecologia humana”. Assim no discurso à Cúria por ocasião do Natal de
2008:
«Dado
que a fé no Criador é uma parte essencial do Credo cristão, a Igreja não pode e não deve
limitar-se a transmitir aos seus fiéis apenas a mensagem da salvação. Ela tem
uma responsabilidade pela criação e deve fazer valer esta responsabilidade
também em público. E fazendo isto deve defender não só a terra, a água e o ar
como dons da criação que pertencem a todos. Deve proteger também o homem contra
a destruição de si mesmo. É necessário que haja algo como uma ecologia do
homem, entendida no sentido justo. Não é uma metafísica superada, se a Igreja
falar da natureza do ser humano como homem e mulher e pedir que esta ordem da
criação seja respeitada. Trata-se aqui do facto da fé no Criador e da escuta da
linguagem da criação, cujo desprezo seria uma autodestruição do homem e
portanto uma destruição da própria obra de Deus. O que com frequência é
expresso e entendido com a palavra "gender", resolve-se em
definitiva na auto-emancipação do homem da criação e do Criador. O homem
pretende fazer-se sozinho e dispor sempre e exclusivamente sozinho o que lhe
diz respeito. Mas desta forma vive contra a verdade, vive contra o Espírito
criador. As florestas tropicais merecem, sim, a nossa proteção, mas não a merece
menos o homem como criatura, na qual está inscrita uma mensagem que não
significa contradição da nossa liberdade, mas a sua condição. Grandes teólogos
da Escolástica qualificaram o matrimónio, ou seja, o vínculo para toda a vida
entre homem e mulher, como sacramento da criação, que o próprio Criador
instituiu e que Cristo sem modificar a mensagem da criação depois acolheu na
história da salvação como sacramento da nova aliança. Pertence ao anúncio que a
Igreja deve levar o testemunho a favor do Espírito criador presente na natureza
no seu conjunto e de modo especial na natureza do homem, criado à imagem de
Deus. Partindo desta perspetiva seria necessário voltar a ler a Encíclica Humanae vitae: a
intenção do Papa Paulo VI era defender o amor contra a sexualidade como
consumo, o futuro contra a pretensão exclusiva do presente e a natureza do
homem contra a sua manipulação.»
Sobre a “ecologia humana”, e
aludindo também à “ideologia do género”, afirma agora o Papa Francisco na Laudato Si`(n. 155):
«A ecologia humana implica
também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um
ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a
lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia
que existe uma “ecologia do homem”, porque “também o homem possui uma natureza,
que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece”. Nesta linha, é preciso reconhecer que
o nosso corpo nos põe em relação direta com o meio ambiente e com os outros
seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para
acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário,
uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por
vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a
cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira
ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua
feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro
com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom
específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se
mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda “cancelar a
diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela”».
Sobre
a “ideologia do género”, também à luz de teologia da criação e da ecologia
humana, o Papa Francisco voltou a falar na exortação apostólica Amoris Laetitia:
«Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente
chamada gender, que “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem
e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base
antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e
diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade
afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e
mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo”. Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo,
que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis,
procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação
das crianças. É preciso não esquecer que “sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem distinguir-se, mas não
separar-se”. Por outro lado, “a revolução
biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade de
manipular o ato generativo, tornando-o independente da relação sexual entre
homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade
tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo
prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais”. Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a
complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em
dois os aspetos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender
substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação
precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a
guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e
respeitá-la como ela foi criada.» (n. 56)
A ecologia da vida
quotidiana
Um outro aspeto
da mensagem da Laudato Si que
gostaria de sublinhar diz respeito à “Educação e Espiritualidade Ecológicas”,
outro dos seus capítulos. A teologia da criação conduz a uma ética ecológica e
a um estilo de vida que a encíclica designa como “ecologia da vida quotidiana”.
Todos e cada um de nós, não apenas os responsáveis políticos ou quem
exerça outro tipo de influências, somos interpelados por este desafio da “ecologia da vida quotidiana”
Não
se trata apenas de repetir aquelas recomendações de que já muitos falam, que as
nossas crianças ouvem nas escolas desde a mais tenra idade, sobre recolha
diferenciada do lixo e outos cuidados desse tipo. O que se propõe é algo de
mais profundo e contrasta com a mentalidade e os hábitos mais correntes (pelo
menos no Ocidente). Também aqui podemos identificar o que tem de mais
específico, a “mais valia” em relação ao pensamento ecologista mais corrente, da
mensagem da Laudato Si`. Trata-se de
educar para virtudes como a gratidão, a gratuidade, a sobriedade e a humildade.
«Viver a
vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto
secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (n. 217) – diz o Papa Francisco, depois de assinalar
que muitos cristãos, até piedosos, não ao fazem, por vários motivos. Algumas
passagens da encíclica são bastante esclarecedoras a este respeito.
«Esta conversão comporta várias atitudes que se
conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar,
implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom
recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de
renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja nem agradeça (…)» (n. 220)
«(…)
A espiritualidade cristã propõe um
crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um
regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas,
agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos
nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica
do domínio e da mera acumulação de prazeres.» (n. 222)
« A sobriedade e
a humildade não gozaram de positiva consideração no século passado. Mas, quando
se debilita de forma generalizada o exercício dalguma virtude na vida pessoal e
social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso,
não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem
de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar
todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano
excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite
algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil
desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos
autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu
lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que
é mal.» (n. 224). Uma outra frase que
merece destaque, na linha da que acima também destaquei, e que nos ajuda a
compreender o sentido profundo que para o Papa Francisco tem a proteção do
ambiente e que nem sempre tem sido sublinhado: «Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se
nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu
ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é
bem e o que é mal.».
Residem aqui os principais desafios
à vida quotidiana de cada um de nós.
Pedro
Maria Godinho Vaz Patto
[1]
Uma visão ecocêntrica tem reflexos jurídicos na
Constituição do Equador, a qual reconhece, já não apenas o direito humano ao
ambiente, mas os direitos da natureza, designada como Pacha Mama, entidade deificada na cultura indígena (e a que também
alude o preâmbulo da Constituição da Bolívia).
[2] Peut-on être catho et écolo ? Lettre
sur lá écologie Artége,
Paris, 2012, pgs. 24 e 25.
[3] Ver,
em tradução brasileira, O principio responsabilidade
– ensaio de um ética para a civilização tecnológica, Contraponto Editora, Rio
de Janeiro, 2006.
[4]
A
revista Nature de dezembro de 2015
publicou as declarações do demógrafo Joel Cohen, segundo o qual a fome no mundo
é devida, não ao excesso de população, mas ao facto de cerca de 55% da produção
nutricional do planeta não ser destinada à alimentação humana (mas à
alimentação de gado, ou à produção de combustíveis), ou ser desperdiçada, sendo
que a restante é mal distribuída.
[5]
Ver Stefano Gennarini e Rebecca Oas, «Climate summit frustrates population
control groups», in Friday Fax, on line, 3/12/2015
[6] Ver
«L´enciclica e la Scienza», in Avvenire,
on line, 15/7/2015
[7]
E surgem, assim,
controvérsias sobre a experimentação em animais para fins medicinais ou da
indústria de cosméticos, o abate ritual de animais segundo as religiões islâmica
e judaica, a exploração agro-pecuária, a caça, a pesca, o circo, as touradas,
algumas modalidades desportivas ou jogos tradicionais. Nos tribunais
portugueses, já se discutiu a licitude de práticas como o tiro aos pombos e
corridas de galgos com lebres.
[8]
O vegetarianismo não é, por
isso, um imperativo ético. A espécie humana alimenta-se de outras espécies como
sucede com estas, que também se alimentam de outras espécies e se integram numa
cadeia alimentar.
[10]
Contra
a posição de associações animalistas que defendem a proibição absoluta dessa
experimentação e recentemente apresentaram uma iniciativa legislativa europeia
nesse sentido
[11] Retomando o exemplo da
experimentação em animais, se esta se destina à indústria cosmética, já não
será moralmente lícita, como não o é à luz da legislação europeia.
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