A eleição de Donald Trump surpreendeu o mundo.
Muitos cristãos, católicos e evangélicos, saudaram essa
eleição como um mal menor, face à sua adversária, Hillary Clinton, empenhada em
alargar ainda mais as possibilidades de recurso ao aborto como direito absoluto,
e capaz de limitar a liberdade de consciência e religião em âmbitos “fraturantes”
como esse (ficou célebre um seu discurso em que afirmava que os Estados deviam
usar meios coercivos para levar as autoridades religiosas a modificar as suas
doutrinas tradicionais quanto a essas matérias). Mal menor porque o aborto
será, hoje, o mais grave e sistemático atentado à vida e dignidade humanas.
Este raciocínio envolve, porém um grave perigo: centrar
unicamente em duas ou três causas (“single
issues”) o empenho político dos cristãos, ignorando ou desvalorizando
outras causas também importantes, assim descredibilizando esse empenho e
justificando acusações de parcialidade e incoerência. Na verdade, mesmo um
eventual “mal menor” não deixa de ser um “mal”. E a agenda de Donaldo Trump
suscita justificados receios a quem se guia pela ética social cristã: desde a
desregulação da posse de armas, ao incremento ainda maior das desigualdades de
rendimentos, à hostilidade sistemática para com imigrantes e refugiados, ou aos
atentados ao ambiente.
A eleição de Donald Trump reforça grandemente uma
corrente que vem soprando com cada vez mais força em vários países, para que as
comissões justiça e paz europeias já haviam alertado na sua ação concertada de
há dois anos, designando-a como “nacionalismo de exclusão”: o reforço das
identidades nacionais não pela positiva, mas pela hostilidade para como o
“outro”. Daí o protecionismo no campo económico, a recusa de acolhimento de
refugiados e imigrantes, o acentuar do “conflito de civilizações” numa luta
contra o Islão que o associa necessariamente ao terrorismo. Para usar a
expressiva metáfora que vem usando o Papa Francisco, pretende-se construir muros
mais do que pontes.
Respeitar a vontade dos eleitores e tentar compreender as
suas razões não pode levar-nos a esquecer que as maiorias também cometem erros
históricos graves (como nas eleições que conduziram ao poder Adolf Hitler, por
exemplo).
A globalização económica tem acarretado benefícios e
injustiças. Tem acentuado desigualdades, mas também tem permitido a muitas
pessoas (sobretudo na China e na Índia) sair da pobreza. Exige uma regulação,
no campo dos direitos sociais e da fiscalidade, que tem faltado até aqui. Mas
não pode «deitar-se fora o bebé com a água do banho». A alternativa passa por
uma globalização regulada, não pelo isolacionismo proteccionista, que favorece
algumas empresas nacionais em detrimento de outras, dos consumidores e dos
países emergentes. Um documento recente dos bispos da União Europeia e dos
Estados Unidos (ver www.comece.eu) alertava para aspetos contestáveis
do tratado de livre comércio e investimento entre essas duas zonas económicas (o
TTIP) que vem sendo negociado (e que
agora parece comprometido face à eleição de Donald Trump), mas sem colocar em
causa as vantagens do incremento desse comércio e desse investimento.
A hostilidade para com imigrantes e refugiados esquece as
lições da história, que revela como as migrações podem beneficiar quer os
países de emigração, que os de imigração. Os exemplos de Portugal e dos Estados
Unidos revelam isso mesmo.
Seria muito ténue e pouco sólida a identidade de um povo
e de uma cultura que receia perder-se pela simples convivência com outro povo
ou outra cultura. Essa convivência pode ser fonte de enriquecimento recíproco.
E, sobretudo, a identidade cristã de um povo e de uma
cultura reforça-se com atitudes cristãs, de acolhimento e hospitalidade, não
com atitudes (“pagãs”) de fechamento e hostilidade, reforça-se construindo
pontes, e não muros.
Pedro Vaz Patto
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